domingo, 4 de junho de 2017

Eu sei, porque o fiz.

Governos e indivíduos. Poder, delegação, (des)responsabilização, conforto. Expectativas e exigências. Nós e os outros. Representados, representantes e quem com eles trabalha. Simplificação, simplificação em excesso, falsificação. Da crença nos sistemas e nas instituições à desilusão. Serão os sistemas de poder inevitavelmente disfuncionais? Porque assim o induzimos? Agir, apesar de tudo. Agir, para mudar tudo. A várias escalas e dimensões. Dos Países, das instituições, de cada um. Assuntos de importâncias diferentes. Decisões com consequências distintas. Mas é de exercício de poder que estamos a falar. Feito por pessoas. E essas não são assim tão diferentes. E nós não somos assim tão diferentes. São vários os pontos de contacto, as experiências próximas. Como é dito, na primeira pessoa: "Eu sei, porque o fiz.". Leitura para refletir.

"Antigamente eu acreditava com tamanho fervor na capacidade e probidade de um governo iluminado que fui trabalhar para ele. Era um diplomata britânico, numa instituição e num sistema que tinha sido fundado sobre a profunda crença de que representantes do Estado, como eu, podiam compreender e arbitrar o mundo de forma eficaz, em benefício das massas menos informadas. Já não acredito nisso. A desilusão nasceu não da conversão ideológica mas da experiência.

No âmbito do meu trabalho, que abordava alguns dos mais preocupantes problemas do mundo, incluindo as alterações climáticas, o terrorismo e as guerras no Afeganistão e no Iraque (fui o responsável do Reino Unido por ambas nas Nações Unidas), foi-se tornando claro, a pouco e pouco, que o governo era incapaz, pela sua própria natureza, de compreender e gerir de forma eficaz aquelas forças. (...) em suma, compreendi, vaga e lentamente, a existência de um profundo e intrínseco défice dos governos: o facto de lhes ser exigido que tomem o que é complexo - a realidade - e o transformem em declarações e políticas simplistas, para melhor convencer a população de que o governo tem as coisas controladas. As pessoas que se encontram no governo não são más ou parvas, pelo contrário, mas o contrato entre as pessoas e as forças governamentais exige que aleguem algo que nenhuma pessoa sensata devia alegar, que o governo é capaz de prever e predizer a gigantesca complexidade do mundo contemporâneo e geri-la a nosso favor. Todos os políticos têm de alegar, perante os eleitores, que são capazes de interpretar o mundo e produzir determinados efeitos, tal como os representantes que trabalham para eles têm de fingir que também eles são capazes. Eu sei, porque o fiz.

(...)

Depois de quinze anos como diplomata tornei-me muitíssimo hábil a escrever telegramas, relatórios e conclusões políticas que reafirmavam ad infinitum a nossa versão dos acontecimentos, muitas vezes sem o mérito de qualquer conhecimento do terreno.(...) Não estava sozinho em tal ignorância, nem na arrogância de achar que, apesar disso, o governo podia declarar com confiança o que estava a acontecer ou o que poderia acontecer em tais locais.

A minha crise pessoal com o governo (...) irrompeu quando as histórias do meu governo sobre o Iraque ultrapassaram a barreira da excessiva simplificação e se tornaram mentiras flagrantes. (...) tinha ignorado os primeiros sinais, demasiado óbvios, no próprio trabalho tanto como em qualquer análise posterior, de que o governo permite e, na verdade, encoraja, os seus protagonistas a tornarem-se moralmente desapegados das consequências dos seus próprios atos, o que permitiu que me tornasse um arquiteto isento de culpas do grande sofrimento dos que se encontravam distantes: neste caso (...) de civis inocentes no Iraque. Só depois de uma reflexão prolongada, lenta e, por vezes dolorosa, cheguei a estas conclusões mais latas sobre a amoralidade intrínseca, mas também sobre a incapacidade, dos governos.

(...)

Observei o crescimento do coro de vozes furiosas nos ajuntamentos públicos e na Internet, exigindo ação, mudança, qualquer coisa, fazendo uso de uma retórica cada vez mais beligerante, mas sem nunca oferecer qualquer solução para além da rejeição da coorte atual de políticos medíocres.

Ponderei sobre a mudança em si, como reagir a este mundo tão complexo com um método que pudesse funcionar. que pudesse garantir a satisfação de descobrir uma verdadeira tração na assustadora face do penhasco íngreme dos problemas. Acabei por compreender que talvez o pior défice dos governos seja este: ao pretenderem arbitrar os problemas do mundo, encorajam de forma invluntária a nossa inação e o nosso desprendimento. Nesse desprendimento fermentam, perigosamente, a raiva e a frustração. 

(...) 

A resolução dos problemas cabe sempre a outra pessoa, nunca a nós.
Contudo, é a ação - e apenas a ação -que muda as coisas. (...) A escala das dificuldades do mundo -a face íngreme do penhasco- e a magnitude da globalização produzem uma sensação paralisante de impotência e frustração. Mas, de facto, um mundo mais interligado do que nunca.onde cada pessoa se encontra a alguns links de distância de todas as outras, significa que as ações no nosso próprio microcosmo podem ter consequências globais."

Carne Ross (2011), A revolução sem líder, Bertrand Editora

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