Cadeiras vazias, muitas, à espera. Ano após ano. E depois eles chegam. E ocupam-nas. Mais de meia centena de milhar no ano passado. 50838, para ser mais preciso. É assim como encher, encher mesmo, um pouco para além dos limites, o Estádio do Dragão ou o Estádio José Alvalade. É esta a dimensão das vagas, em instituições públicas, para o concurso nacional de acesso ao ensino superior.
Cadeiras vagas, que são distribuídas pelas instituições, universidades e politécnicos, com base em "orientações" fixadas todos os anos, tardiamente. Sempre iguais, no geral. Um número máximo por instituição semelhante ao do passado. Sempre diferentes, nos detalhes. Estímulo de cursos pós-laborais ou à distância, estímulo de algumas áreas, restrição de outras, fomento de consórcios, consideração da chamada empregabilidade, ou melhor, dos inscritos em centros de emprego, fecho de cursos com poucos alunos, exceções. Varia. Sempre. Dificultando o planeamento e a gestão. Das instituições e dos candidatos.
Este ano não será exceção. Será igual, mas diferente. Menos vagas nas instituições de Lisboa e Porto, mais vagas nas restantes. Uma variação de 5%. Cadeiras que mudam sítio, de instituições, de região. Esta será uma das orientações do Governo. E que está a provocar discussão, pública e publicada. Diz agora o Ministro que ainda não é uma decisão, e que pretendia provocar o debate. Estranho processo. Porque se discute, no espaço público, aquilo que apenas é do conhecimento de alguns: a proposta, na íntegra e a sua fundamentação. Por certo se fosse um caso de outra natureza, mais secreta ou reservada, já estaria aí acessível num sítio qualquer.
Ainda assim, o que é do domínio público já permite alguma reflexão. Comecemos pelos comentários. Aqueles que estão escritos em artigos de opinião, que terão sido bem refletidos, que não foram editados, que não se prestam a segundas interpretações.
Afirma José Ferreira Gomes, professor da U. Porto e anterior Secretário de Estado do Ensino Superior, no Público, de 1 de março:
"Como justificação, basta a ideia de que as instituições do interior irão ter mais estudantes, não sendo necessário justificar porquê."
"Os estudantes expulsos do Porto irão procurar lugar no Minho e em Aveiro, para além das instituições privadas".Passando da capital do Norte para a capital propriamente dita, leia-se João Duque, professor da U. Lisboa, no Expresso, a de 3 de março:
"O Governo decidiu reduzir 5% das vagas do ensino superior público, nas cidades de Lisboa e Porto, transferindo-as para as universidades do interior. Não tenho nada a opor à abertura de vagas no interior. Mas a forma de se fazer essa transferência é própria de quem não gosta de dar liberdade de escolha."
"Perguntem aos 5% que forem empurrados à bruta para fora de Lisboa e Porto onde pensam votar nas próximas eleições..."
"Imagine-se que o Governo reforçava significativamente o orçamento das universidades do interior e que estas conseguiam assim contratar um número significativo de investigadores e professores de renome internacional, alguns prémios Nobel e até lá conseguiam instalar alguns centros de referência? E que, em paralelo, aumentavam o número e reforçavam as bolsas de estudo para essas universidades?"E o que diz o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas? Bem, por agora nada. Irá ainda analisar a proposta em conjunto com outras medidas que se encontram em discussão. Irá, portanto, reagir apenas. Taticamente.
Entendo que as medidas devem ser escrutinadas, debatidas, criticadas, contraditadas. Bem como as posições de comentadores, académicos ou responsáveis institucionais. Mas não vale tudo! Não pode valer tudo! E quem é da área não pode sequer invocar precipitação ou desconhecimento. Por isso, até julguei estar a ler mal, em duplicado e em estéreo, com ecos a Norte e a Sul. "Estudantes expulsos do Porto"; "5% empurrados à bruta para fora de Lisboa e Porto"; "instituições do interior"; "universidades do interior". ?
Primeiro: a medida não se destina ao interior; neste caso é Lisboa-Porto face ao resto do País. Misturar os dois discursos é, obviamente, erróneo.
Segundo: não há estudantes expulsos nem empurrados à bruta. Esta terminologia, só por si, deve fazer refletir. As vagas de Lisboa e Porto não estão reservadas para os residentes nessas cidades. São ocupadas através de um concurso, nacional. São ocupadas em função das vagas disponibilizadas, das opções dos candidatos e das médias. São ocupadas por gente local que, sim, serão a maioria, mas também por gente de fora. Mas isso, os articulistas sabem-no.
Terceiro: esta medida não é um atentado à liberdade de escolha. Isto pela simples razão que a situação atual não é de completa liberdade de escolha. Há limites para as vagas em cada instituição, limites adicionais em algumas áreas e limites específicos para cada curso. Para além de, naturalmente, haver cursos que não existem em todas as instituições e, pasme-se até alguns que não existem em nenhum local do interior do País (http://notasdasuperficie.blogspot.pt/2017/11/nao-ha-direito.html).
Passemos então à substância, ou a algumas substâncias distintas, que aqui se podem misturar. O que se pretende atingir, porquê e como? Pretende-se, aparentemente, alunos de formação inicial mais espalhados pelo território nacional. Aparentemente, como arma de combate às assimetrias regionais. Aparentemente, usando o ensino superior como motor. No passado isto foi feito, mas criando instituições de raiz, novos pólos, as novas universidades e os institutos politécnicos. Mas qual é, então a distribuição ideal que o Governo preconiza, e porquê? Duvido que se tenha feito algum estudo.
Escrevi, em tempos, "(...) esta medida, configurada como está, parece ignorar o país real, as razões da escolha de um curso e os próprios dados; e sobrevaloriza o poder do dinheiro – de algum dinheiro - como motor da mudança demográfica.", a propósito do programa +Superior, que visava atrair mais estudantes para o interior E terminava dizendo que "Mudanças verdadeiramente estruturais poderiam ser alcançadas através de outras medidas: alterar a distribuição nacional de vagas; mobilizar pessoas e verbas para as zonas escolhidas; construir mais projetos que atraíssem pela qualidade e pela diferenciação. Mas talvez não seja isso que se pretende.". (http://notasdasuperficie.blogspot.pt/2014/09/mais-superior.html).
Então a questão era outra: era de facto o interior que estava em causa. Aquele interior que todos querem promover, mas à distância, a partir do litoral. Hoje, fala-se em redistribuir cerca de 1100 vagas de Lisboa e Porto por todo o território, numa proporção igual em cada instituição (+5%), seja ela a Universidade do Minho ou o Politécnico de Beja, e sendo certo que nem todas as vagas virão a ser ocupadas. O impacto final em termos de desenvolvimento será mínimo, estou convencido.
A alteração da distribuição de vagas é uma medida administrativa, fácil de tomar e de implementar, e que pode permitir mostrar números rapidamente. Mas sem dimensão suficiente não produzirá o pretendido efeito de arraste. Quando muito, conduzirá a pequenos ajustes e desajustes. As outras alternativas requerem uma abordagem mais integrada, recursos avultados e persistência ao longo do tempo. E não estou a falar de contratar prémios Nobel.
Numa altura em que tanto se apregoa a importância das competências transversais e das atitudes, da mobilidade internacional e do conhecimento do mundo, da bagagem de experiências diversas não seria antes de estimular o estudar e viver fora de casa? Ganhar vida e ganhar País? Fugir à endogamia regional? Sim, isso obrigaria, entre outras coisas, a repensar a rede de ensino e o modelo de apoio social existente. Mas vale a pena pensar nisso!
Digo eu, a partir de uma cidade média, situada no litoral.
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