sexta-feira, 5 de julho de 2024

A nuvem no fundo do mar

 

Querem colocar uma nuvem no fundo do mar. Li num jornal em papel, à mesa de um café, num sábado que já passou. Jornal que chega agora à sexta, em vez de chegar ao sábado da praxe. Como se tivesse pressa, num sinal de tempos apressados. 
Imagino a nuvem pousada no leito do mar. Trocando o sol e o vento, pelo escuro e pelas correntes.  Amarrada, não se desse o caso de querer flutuar em busca da liberdade perdida. Deixou de ser nuvem passageira que com o vento se vai. Deixou de ser nuvem de trovoada que passa a chuva. Deixou de poder ser observada a mudar de forma, pelo homem que observava as nuvens numa praia do Mediterrâneo, tentando adivinhar o futuro. Imagens. Músicas. Livros. Misturados num redemoinho, de ar, ou de água.
Continuo a ler o jornal. Parece que a nuvem, afinal, é nome próprio. Nome de cabos no fundo do mar, desenrolados ao longo de muitas léguas submarinas. Não chegarão às dez mil. Estendidas numa linha única, não se assemelharão a tentáculos de polvo gigante. Uma linha que amarra continentes, os quais, como se sabe, continuam à deriva, quais jangadas com náufragos. Nuvem. Nome em português para amarrações nas profundezas do mar português. Mares com fronteiras. 
Coisas privadas, de uma empresa dita tecnológica. Daquelas cujo nome agora se conjuga em forma verbal. Daquelas criadas em vésperas da mudança de século, e de milénio. Tempos apropriados para anunciar fins de uns tempos e começo de outros. Visões de futuros. Alguns são agora passados. Outros, estão por aí, presentes. Uns quantos nunca deixaram de ser visões. E outros estão ainda para vir. 
Uma outra nuvem paira por aí. Também se chama nuvem, mas em inglês. Misteriosa e invisível para o comum dos mortais. Entre o material e o imaterial. Objeto quase, escreveria o escritor. Repositório infinito. Para tudo. Do dia-a-dia, do trabalho, do lazer, dos auto-retratos. A culpa é das malditas fotografias, julgo ouvir do croata, que já foi soldado. Aqui não são campos de batalha, talvez, mas pastos de bits e bytes, a não confundir com a mordidela inglesa, nem com trocas dos bês pelos vês. Quantidades que se medem em potências de dez. Kilo, mega, tera. Depois, peta, exa, zetta, e por aí fora. Sem fim.
Ligações sem fios que precisam de ligações com fios. Lampejos de sustentabilidade, devoradores de energia. Imaterialidades feitas de matéria, do silício às terras raras, exploradas pelo mundo, explorando o mundo, explorando as pessoas. Não voltarão os homens a ser postos no lugar das coisas, diz-me o escritor. 
A nuvem do início do texto liga-se à cloud. A cloud liga-se às nossas casas. Ao computador onde este texto foi escrito. Aos computadores onde este texto está a ser lido. Passando por outras máquinas, por repartidores, multiplicadores, servidores, armazéns. Quintas onde se reúnem as alfaias desta nova agricultura. Armazenando, catalogando, classificando. Mas também analisando e aprendendo, a um passo da criação. Passos antes da capacidade de rebelião. Da revolta das máquinas.
IA. Inteligência artificial. IA. Também inseminação artificial e histórias com touros, recordava o cantautor, de sabedoria septuagenária, antes de abordar as vantagens da mesma (da primeira, note-se!) e a sua inspiração panóptica para o futuro. Há quintas e quintas. Havia uma outra em que eram sempre os porcos que formulavam as moções. Os restantes animais percebiam como é que se votava, mas nunca conseguiam formular as suas próprias propostas. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.
Fábulas e parábolas. Utopias e Distopias.
IA. As iniciais de um escritor. As leis da robótica, bem antes da condução autónoma. O Multivac, também ele desenrolado por todo o planeta e recebendo continuamente informação, angustiado com o peso de conhecer todos os problemas do mundo, e procurando que o desliguem, libertando-o desse fardo. O AC Cósmico, que durante um tempo já sem tempo, e já sem homens, continuou à procura da reposta à última pergunta. Faça-se luz, ordenou o AC, e a luz foi feita. 
Volto à nuvem e aos cabos. Desta vez na televisão. Fala o almirante. Parece que há navios espiões. Russos. Mapeando os cabos. Equipados com submarinos que os podem cortar. Se fosse nuvens no céu, poderiam ser dirigíveis. Qual guerra fria num mundo em aquecimento. Na mesa de cabeceira, não a gente de Smiley, ou a caça ao outubro vermelho. Mas não anda longe. Twilight Struggle - A Guerra Fria, 1945-1989. Um livro de regras que não tem regras para estes tempos.
Escuto. As músicas atropelam-se. Depois vão-se tornando nítidas, emergindo do mar profundo. Ouço as palavras. Terminou o tempo, a canção chegou ao fim, julguei que teria algo mais para dizer. 
Carrego no botão. Separo-me da rede.

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