terça-feira, 29 de outubro de 2024

Vamos falar de propinas

 






Tendo a olhar com prudência para escritos em espaço fortemente limitado, como é o caso dos jornais em espaço físico. Sei como é difícil abordar questões complexas nesses meios, com o risco inerente de simplificação excessiva. Sei que as escolhas do que fica dentro e o que fica fora, e das próprias palavras utilizadas, podem induzir diferentes leituras. Mas estou habituado a lidar com limites impostos ao número de palavras ou carateres de, a fazer escolhas, a praticar uma escrita a que chamo bonsai, procurando aparar, mantendo a forma e vitalidade. No fim, a responsabilidade primeira da mensagem, é do autor.

Vem isto a propósito de uma leitura recente e da reflexão que me suscitou. Foi no fim de semana passado que, enquanto folheava o Expresso, como habitualmente, me detive num artigo sobre o papel do ensino superior como elevador social. Da autoria de Luís Cabral, professor de Economia na Universidade de Nova Iorque, abordava as dimensões de acesso, económica e social. Chamou-me a atenção, principalmente, a vertente económica. Pelo conteúdo, pela forma, pelo tom. Pelas escolhas.
Concordo com o ponto de partida enunciado. “O problema económico é muito mais do que as propinas: entre alojamento e alimentação e livros e outras despesas, o custo pode chegar a 900 euros mensais.”. Acredito que isto é hoje consensual na generalidade dos meios. Um facto acentuado por anos de descida do valor máximos das propinas e de subida extremada, e muito superior, dos custos com a habitação, a para de um período recente de inflação elevada.
Assim, estranho a afirmação que se seguia de imediato. “A ideia de que o problema económico se resolve com propinas baixas ou nulas, por melhor intencionada que seja, não faz sentido.”. Não me parece que os defensores de propinas baixas ou nulas afirmem que tal resolve o problema económico. Não é isso que tenho ouvido. Não é por isso que continuam a ser um ponto de debate. Talvez tenha sido assim no passado, mas e, também, por uma questão de modelo de sociedade e de repartição de bens e de custos. 
Prosseguindo. “Mais importante ainda, as propinas baixas ou nulas tornam a universidade pública um subsídio aos ricos à custa do contribuinte médio. Estamos nós aqui com taxas de IRS altas e crescentes para depois desfazer a progressividade da tributação com um sistema altamente regressivo.”. O nosso modelo de impostos assenta, de facto numa tributação progressiva dos rendimentos, e não num pagamento diferenciado e progressivo em cada acesso a um serviço público, sejam eles de educação, saúde, justiça, ou de infraestruturas.  Não é para mim claro se o autor preconiza um modelo de taxação mais elevada de acesso, progressivo, em substituição ou em conjugação com os impostos sobre o rendimento. 
Daqui ao que se segue é um pequeno salto, em que o autor não se coíbe de qualificar a situação e os seus defensores, antes de avançar para “a” solução, determinística e única. "É ineficiente, é injusto, é apenas justificável ou por ignorância ou por um populismo (neste caso de esquerda) que tem de ser denunciado. Cobrando propinas a sério, pelo menos ao valor de custo, o sistema público encaixaria um bolo de receitas mais do que suficiente para apoiar os estudantes economicamente desfavorecidos, não só dispensando-os do pagamento de propinas, como também atribuindo um estipêndio condigno com a vida de estudante longe de casa (o que é frequentemente o caso)."
Há quem tenha poucas dúvidas e raramente se engane, o que não é o meu caso, mas parece ser o de alguns economistas. O que não cessa de me espantar num domínio, por excelência, de construções sociais e de interação entre indivíduos, felizmente diversos, com espírito crítico uns mais do que outros, anseios e visões diferenciadas. 
Voltemos à substância.
Olho em redor. Em Inglaterra e nos Estados-Unidos são praticados valores de propinas substancialmente elevados. Quem pode, como sempre acontecerá, paga à cabeça, a pronto. Depois, nesses países, paga quem tem acesso ao crédito, contraindo assim uma dívida que se prolonga por décadas, com óbvios custos de disponibilidade financeira e, portanto, de oportunidade. E com os riscos inerentes, bem reais, de crédito malparado, de uma bolha de dívida, ou até da transferência de carteiras de dívida para fora da esfera pública. Não consta que sejam dos países em que o valor das propinas mais reverte para o acesso de outros ao sistema de ensino superior.
Olho em redor. Na Áustria, Alemanha, França, Finlândia, e República Checa não existem propinas ou têm um valor residual. Não são, sequer, os únicos países da Europa em que tal acontece. Aliás, em quase todos as propinas estarão muito distantes do preço de custo. Ignorantes? Populistas? Ou com uma visão diferente para a sociedade? Que deve ser debatida, que importa debater, seriamente, sem simplificações e qualificativos abusivos. 
Continuemos, na tentativa de perceber o argumento. Propinas pelo menos ao valor do preço de custo. Pelo menos. Portanto, possivelmente, até mais, à laia de imposto. E quanto ao preço de custo? Aqui, será necessária uma análise que permita estimar e atualizar os preços reais do ensino universitário. Tarefa mais difícil do que possa parecer, em instituições que combinam muitas funções, com partilha e segmentação de recursos, e com uma contabilidade que pode não representar rigorosamente todos estes domínios. Um custo que será necessariamente diferente de instituição para instituição, em função do corpo docente, dos serviços de apoio, dos serviços adicionais para os estudantes, da dimensão, tipologia e idade do edificado. Um custo que, adicionalmente, variará no tempo, ano a ano, em função de recrutamentos e cessações, de evolução dos ativos, do próprio número de estudantes.
E quanto à redistribuição para quem necessita? As instituições são assimétricas em relação aos estudantes que as frequentam e, portanto, ao balanço entre deve e haver, entre quem pode pagar e quem necessita de apoio. A que se somam as assimetrias regionais em termos de custo de vida. Passarão, assim, as propinas a ser receitas do Estado, que ficará encarregue da redistribuição? 
É tempo de concluir. “Na minha opinião, tanto o problema da admissão à universidade como o pagamento económico seriam facilmente resolvidos se houvesse mais vontade política e menos demagogia.”. Não sei se os problemas seriam facilmente resolvidos. Concordo quanto à necessidade de menos demagogia, incluindo de quem tem acesso ao espaço público.

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