Verão. Férias. Deixei a realidade do lado de fora. Por luxo, necessidade ou inconsciência. Ainda assim chega até mim em pequenas doses, escorrendo pelas frestas, em fragmentos, atenuada. Feita mais de palavras lidas do que de sons e imagens. Palavras lidas, palavras escritas. Escritor, propósito, texto. Leitor, interpretação, reflexão, crítica.
Vejo uma notícia. Leio uma declaração. Com data. 31 de julho. Publicada numa página da internet uns dias depois, já em agosto. Declaração conjunta CRUP/CCISP – Ensino Superior português reafirma compromisso com a paz, a dignidade humana e o diálogo. Os autores estão, desde logo, identificados. São os órgãos que representam as Instituições Públicas, Concordatárias e Militares de Ensino Superior, que não todas as instituições de ensino superior portuguesas.
A forma adotada é a de uma declaração, conjunta, conjugada, acordada. Já participei em escritas dessas, numa das minhas outras vidas. Sei como é difícil conjugar uma escrita sintética com a abordagem de temas complexos. Neste tempo de atenção estilhaçada, a capacidade de atração é inversamente proporcional ao tamanho do texto. Lembro-me disso ao escrever aqui, mas pouco importa. Procurar evitar interpretações erróneas. Decisões. O que manter e o que deixar de fora. O essencial e o acessório. O que ficaria bem mas não é imprescindível. Escrever. Cortar. Reescrever. Aparar. Escrita Bonsai.
Interrogo-me sobre o tempo e o propósito da declaração.
Último dia do mês de julho. As instituições de ensino superior entregaram-se à letargia dos dias quentes. Sem alunos, exceto uns quantos com prazos contados. Sem docentes, ou quase. Com menos investigadores. Com menos trabalhadores não docentes e não investigadores, os que ficam mantendo a máquina a funcionar, por vezes com trabalho redobrado. Com espaços vazios. Com espaços fechados. Não será, portanto, uma mensagem para dentro de portas. Será uma mensagem para a sociedade.
Último dia do mês de julho. Parte do país também entregue a férias. Outra parte a trabalhar para quem está de férias. Ainda outros a trabalhar, como sempre, ou apenas porque o seu ano se escoa de forma diferente. Os políticos a banhos. A silly season. As notícias sobre praias e gastronomia. Os incêndios, de novo, sufocando em tons de vermelho e cinza.
O que seria tão urgente para justificar uma posição pública destas instituições? O que exige uma reafirmação, que não uma afirmação, do seu compromisso com a paz, a humanidade e o diálogo? Estariam estes valores em causa? Ameaçados? De fora? Ou de dentro? A quem se destina, de facto, a mensagem?
Volto à declaração. Quatro parágrafos apenas. Check. Certamente pensados, discutidos, debatidos e aprovados, que isto de reunir umas dezenas de instituições nem sempre é simples. Parágrafos escritos. . Sujeitos, como sempre, a interpretação. Sujeitos, inevitavelmente, à crítica. Afinal o que nos querem dizer? O primeiro, segundo e quarto apresentam estas instituições de ensino superior como espaços abertos e de multiculturalidade, acolhendo estudantes de proveniências e culturas diversas. Espaços de respeito e compreensão. Com a convicção, ou a esperança, de que este seja um contributo para um futuro melhor, à escala global, dentro dos princípios enunciados.
Sim. Há mais gente de origens diversas no ensino superior. Por outro lado, acredito que a vivência do ensino superior representa hoje uma fatia mais mais pequena da vida individual do que já representou. Não só em tempo vivido, mas sobretudo em tempo partilhado. Fruto da própria massificação ou democratização do ensino superior, como lhe queiram chamar, em que este deixou de ser objetivo e destino de vida. Resultado da coexistência e competição quotidiana com muitas outras dimensões da vida. Ampliado pela comunicação omnipresente, ao alcance dos dedos, com gente próxima ou longínqua, conhecida ou desconhecida. Há muitos outros espaços de interação e, de certo modo, a influência do ensino superior no percurso de cada um terá sido atenuada.
As universidades partilham os feitos dos seus antigos alunos. Certamente pela satisfação pelo percurso de alguém que se conhece, ou conheceu, e que, em determinado momento fez parte do dia a dia da instituição. Sem dúvida também para criar um efeito de associação da instituição ao sucesso alheiro, como que reclamando parte do êxito, e assim fortalecer a sua imagem. A mente deambula. Imagino sucessos. Empreendedor, inventor, medalhado, distinguido. Formado na Universidade X. A mente deambula para o tema da crónica. Imagino outros percursos. Títulos que não existirão. Perseguidor. Discriminador. Desumano. Fomentador de conflitos. Criminoso. Criminoso de guerra. Formado na Universidade X.
Mas voltemos à declaração. Falta ainda analisar o terceiro parágrafo. E é aí que vislumbro o verdadeiro propósito da comunicação. É, também aí, que continuo sem encontrar pistas para o momento escolhido. É, ainda, aí que vejo a declaração colapsar e tornar-se desprovida de sentido, falhando em toda a linha em relação aos valores apregoados.
É com profunda preocupação que assistimos à escalada da violência em Gaza e noutras regiões, ao sofrimento humano que dela decorre e à erosão de valores que deveriam unir a comunidade internacional. A tragédia no Médio Oriente interpela-nos a todos.
Ou seja, é um comunicado obviamente sobre Gaza, o único nome em duzentas e uma palavras, sem assumir ser um comunicado sobre Gaza, mas procurando conforto num conjunto de valores que se aplicam a tantos sítios do mundo neste ano de dois mil e vinte e cinco do calendário que usamos por estes lados. Podia, de facto, referir-se apenas ao que está a acontecer lá. Mas não o faz e refere também, mas sem nomear, outras regiões, como se verá mais abaixo. Fica a sensação de receio de assumir, plenamente, o verdadeiro propósito. Politicamente correto? Não! Absolutamente incorreto...
Voltemos, por instantes, ao momento. 31 de julho de 2025. Passaram 663 dias desde o 7 de outubro de 2023. Houston B. continuaria, 15912 horas, 954720 minutos, 57283200 segundos, 1,816 voltas ao Sol. Mas isso são leituras de outro livro. A pergunta persiste. Porquê agora? Haverá quem diga que mais vale tarde do que nunca. Haverá quem imagine pressões individuais, de grupo, ou de associação para uma tomada de posição. Haverá quem imagine o voluntarismo de uma instituição, e a impossibilidade de dizer que não de outras. Haverá, talvez, quem tenha juntado outros parágrafos, mencionando a motivação, mas diluindo o propósito de forma a afugentar possíveis críticas. Haverá quem pense no receio de relações em curso, com instituições israelitas, ou até questões de Estado, veja-se a hesitante e contraditória posição do Governo em tempos recentes. Mas vamos ao texto.
É com profunda preocupação que assistimos...
Bom, ficamos a saber que as instituição que integram o CRUP e o CCISP estão preocupadas, tão só e apenas. Ocorrem-me muitas outras expressões, com cambiantes diversos, para além da preocupação, palavra de uso banal para muitos contextos. Podiam estar horrorizados, ultrajados, indignados. Recorrendo a um estereótipo da expressão inglesa de sentimentos, enquanto a tragédia ocorre, they are deeply concerned.
... à escalada de violência ...
Aqui as coisas pioram, porque a preocupação, profunda, não é com a violência, em consonância com os valores humanistas referidos, mas com a escalada da dita. A hierarquia do horror, qualquer que seja já a fasquia, um limite entre o que causa preocupação e o outro. Isto sem ser claro qual é a escalada referida, a 31 de julho de 2025, depois de tudo a que já se assistiu, e aquilo que apenas se entrevê, ou imagina, sem testemunhos. Adicionalmente, parece ser apenas uma constatação de factos, a violência por si, sem vítimas, sem perpetradores, sem atores, sem origem.
... em Gaza...
Eis o único elemento nomeado na declaração, que se transforma assim no seu verdadeiro, e único, propósito. Um local.
... e noutras regiões,
Regiões sem nome. Sofrimento sem rosto. Evitando que a declaração seja "apenas" e objetivamente sobre Gaza. Gaza como símbolo do sofrimento de "outras regiões"? Para quem sofre nelas não há símbolo, nem comparação. Qual é o medo afinal? Para quê o subterfúgio? Para quê considerar uns menos dignos de serem nomeados? Porquê a falta de coerência? Uns e os outros, como no filme. Nós e eles, como na música. Ou ainda como Houston B, que partilhava as páginas do romance com alguém cujo nome a cidade esquecera. Assim, ao correr dos dedos sobre as teclas, poderia nomear umas quantas regiões. A Síria, que já valeu uma plataforma para apoio a estudantes desse país, iniciativa do Presidente Jorge Sampaio. O Líbano e a Líbia. A Ucrânia e a Rússia. O Afeganistão, hoje inimaginável, que ficou sem imagens e sem voz, sem testemunhas. O Haiti que raramente faz manchetes deste lado do Atlântico. Myanmar, Sudão, Moçambique. Mais valia terem assumido o verdadeiro intuito da declaração.
... ao sofrimento humano que dela decorre...
Sofrimento presente. Futuros adiados, condicionados. Futuros suprimidos, eliminados, liquidados.
... e à erosão de valores que deveriam unir a comunidade internacional.
A comunidade internacional, feita por países. Os países, feitos por pessoas. Valores nem todos partilhados, ou pela menos, não na mesma hierarquia. Como é patente na realidade atual. Como é evidente através da história. Apesar de tudo, há momentos, e regiões, em que a paz, o respeito e prosperidade se instalam e permanecem por períodos mais ou menos alargados. Mas partir do princípio que esses se sobrepõem a tudo, num mundo tão desigual, é pura ilusão.
A tragédia no Médio Oriente interpela-nos a todos.
Voltamos ao verdadeiro propósito, agora numa expressão um pouco mais alargada: o Médio Oriente. O que impeliu estas instituições, a 4000km de distância do leste do Mediterrâneo, de fazer esta declaração pública. Interpeladas, também elas, irão tomar alguma inciativa?
Verão. Férias...
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