Com a aproximação das eleições, e ainda antes dos programas partidários, começam a surgir, ou a ressurgir, propostas e medidas várias, que vale a pena analisar, comentar, criticar, melhorar, ou descartar.
Um dos documentos recentemente divulgados é o relatório "Uma década para Portugal", que se centra, segundo os autores, na apresentação de um "caminho para a promoção do desenvolvimento económico e da coesão social".
Em matéria de ensino superior, e apesar de apresentar um diagnóstico em que refere a conhecida baixa qualificação da população portuguesa e o enfraquecimento recente das instituições de ensino superior, centra-se unicamente, ao nível das propostas, no papel que as instituições de ensino superior devem ter na promoção da empregabilidade dos seus alunos (pág. 60 - "Reforçar o acesso e a empregabilidade no ensino superior").
E quais são as propostas? Basicamente duas: 1) Alocar recursos adicionais às universidades para ações de promoção de empregabilidade. 2) Criar incentivos de médio e longo prazo visando premiar resultados neste domínio e, sobretudo, para que as instituições adaptem os seus programas, através do reforço de competências várias e da promoção de estágios, por exemplo. Neste domínio ponderam consignar uma proporção do IRS pago pelos ex-alunos de cada Universidade ao seu financiamento.
Vamos por partes, reconhecendo desde logo que este não é um documento de política setorial que não tem, nesta matéria, detalhe suficiente, e que muita da reflexão que se segue será aplicável a propostas dos mais variados setores.
1. A palavra "empregabilidade" pontua todos os discursos, com aparente consenso; mas, de tão gasta, tornou-se um chavão impreciso, à semelhança do que aconteceu, por exemplo, com a expressão "desenvolvimento sustentável", há algumas décadas. Valeria a pena começar por aqui: o que se entende por empregabilidade? A transição do estudo para o trabalho? Para qualquer trabalho? A curto prazo? A capacidade para se manter empregado a médio prazo? Empregabilidade é diferente de ter emprego, e mais diferente ainda de qualidade de emprego.
2. Parece estar a generalizar-se, progressivamente, a ideia de que as instituições de ensino superior (IES) deverão ser as principais responsáveis pelo emprego imediato dos seus diplomados. É uma visão meramente utilitarista do ensino superior, reduzindo-o a um objetivo meramente profissionalizante, ajustado às necessidades locais de curto prazo, sem visão de futuro, e que ignora as empresas, afinal as principais criadoras de emprego,
3. Ao eleger este como o único tema sobre ensino superior, o Relatório não enfrenta um dos problemas que diagnosticou, o enfraquecimento recente das IES, não revelando nada sobre modelo ou níveis de financiamento para o setor.
4. A primeira proposta, vaga, é a alocação de recursos adicionais às IES, para ações de promoção da empregabilidade. Não é claro que tipo de ações nem que verbas seriam envolvidas. Instituições mais fortes, com melhores equipamentos, melhores profissionais, melhor geridas, melhor avaliadas, proporcionarão melhor formação. Mas isso requer uma abordagem global e não uma afetação parcelar de uma verba.
5. A segunda proposta, de consignação de uma proporção do IRS dos ex-alunos, à sua instituição de origem, é uma medida que me parece profundamente desajustada por um número de razões:
a) Não descortino o fundamento conceptual: IRS não é só rendimento do trabalho; ainda que assim fosse, o "sucesso" financeiro não é determinado, só ou sobretudo, pelo curso, e menos ainda quanto mais se progride na carreira e na idade, com outras componentes de aquisição de experiência.
b) Ignora o mundo global, em que há diplomados que trabalham e pagam impostos noutros países; veja-se a frase: "Esta medida visa premiar cada instituição pela capacidade de gerar valor em Portugal dos alunos que formaram".
c) Beneficia as instituições maiores (mais diplomados) e com cursos em determinadas áreas (associadas a melhores remunerações médias), sendo um incentivo ao crescimento e a uma uniformização de apostas em determinadas áreas.
e) A afetação de receita, por esta via, às IES não está inserida numa perspetiva global de financiamento, nem está quantificada.
f) Implica, na prática, o Estado prescindir da capacidade de afetar a porção da receita fiscal correspondente, para Educação ou outros fins, uma vez que seria de afetação automática.
h) Tem vários problemas práticos de aplicação de que são exemplo pessoas com vários diplomas (licenciatura, mestrado, doutoramento) obtidos em diferentes instituições; ou o IRS de agregados familiares vs. consignação que corresponde ao histórico individual.
i) Não são apresentados exemplos de aplicação similar, parecendo pretender ser um substituto, imposto, de uma lógica de mecenato, prática corrente nos Estados Unidos da América, por exemplo.
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