"O Ensino Superior mudou muito em apenas uma década. No entanto, paradoxalmente, a Lei que estabelece as bases do seu financiamento manteve-se inalterada na forma e quase votada ao esquecimento."
Artigo de opinião publicado, hoje, no Observador: http://observador.pt/opiniao/a-reforma-por-fazer/
O virar do século pertence a um passado ainda recente, mas que se vai esbatendo rapidamente com a velocidade dos dias. O euro dava então os primeiros passos; António Guterres era Primeiro-Ministro e a Europa apostava na Estratégia de Lisboa; um outro Papa visitou Fátima; o Facebook, o YouTube e o Twitter estavam por nascer.
Esta mesma vertigem afeta quem trabalha no Ensino Superior: as Universidades de hoje são as mesmas de então; são as mesmas, mas são diferentes.
O português mistura-se agora com outras línguas, faladas fluentemente ou apenas arranhadas. Sons, rostos e hábitos dos novos estudantes, que chegam de paragens distantes. São já mais de 10%, os estrangeiros em várias universidades. Fruto da aposta Europeia na mobilidade e acelerado pelo Estatuto do Estudante Internacional.
Os currículos e os processos de aprendizagem vão-se modificando, induzidos pelo processo de Bolonha, pelas tecnologias, pela crescente formação secundária, pela preocupação com a empregabilidade. Os contextos são hoje mais variados, com ambientes reais ou simulados, estágios em empresas, desenvolvimento de projetos e participação em atividades de investigação.
Muitos cursos fecharam, outros foram modificados, alguns não chegam a abrir. Resultados da intervenção da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior. Avaliação, acreditação, certificação, sistemas de garantia da qualidade e, em breve, avaliações institucionais, são parte integrante do quotidiano das Universidades.
O percurso dos docentes mudou. Começando no doutoramento, engloba solicitações sempre crescentes: docência, investigação, cooperação, divulgação da ciência, captação de fundos, gestão universitária. E é objeto de avaliação individual. Muitos professores, à imagem das Universidades, são também eles os mesmos, e são também eles diferentes. A renovação geracional não aconteceu e a média etária aumentou.
Os órgãos das Universidades encolheram. Os Conselhos Gerais são de reduzida dimensão e abertos à influência exterior, incluindo, obrigatoriamente, pessoas externas à Universidade. Uma imposição do Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (2007), que criou também a figura das Universidades-Fundação, caminho seguido até agora por cinco instituições, e que continua a suscitar grande controvérsia.
Estes breves traços mostram como o Ensino Superior mudou, e muito, em apenas uma década, em grande parte por ação externa e legislativa, sobretudo a partir de 2006.
No entanto, e de forma paradoxal, a Lei que estabelece as bases do financiamento do Ensino Superior, e que data de 2003, manteve-se inalterada na forma e, talvez por isso, quase votada ao esquecimento. Senão vejamos. Associa o valor das propinas à qualidade dos cursos; nunca aconteceu. Estipula que as propinas devem reverter para o acréscimo de qualidade no sistema; carece de demonstração. Consagra um financiamento por fórmula e com indicadores de desempenho; a última fórmula foi publicada em 2006, sofreu algumas mutações e sucumbiu, dando lugar a um orçamento em que o passado é quem mais ordena; captar estudantes, realizar melhor investigação ou ter um corpo docente mais qualificado deixou de ter relação com a dotação atribuída pelo Estado. A Lei foi assim desaparecendo, sem combate, com a conivência de Governos, Assembleia da República e Instituições de Ensino Superior.
Um registo nada abonatório que se estende a diversas tentativas de contratualizar financiamento e cumprimento de objetivos. Os contratos que foram celebrados com as primeiras três fundações não foram cumpridos pelo Estado. O Contrato de Confiança, que visava aumentar a frequência do ensino superior, passou rapidamente à história. Agora temos um novo contrato, para a legislatura em curso, que prevê mais estudantes de pós-graduação, maior captação de investimento privado e um “fundo de resolução” a cargo das Universidades. Por seu turno, o Governo compromete-se a não reduzir as dotações do Orçamento do Estado, a apoiar a criação de emprego científico e académico, e a reduzir a burocracia. Um contrato que parece fruto do receio dos tempos, do receio das Finanças, ou do pragmatismo, dirão alguns; um contrato ambicioso e estabilizador, dirão outros.
As discussões e medidas parcelares, como os estímulos ao emprego científico, a política de propinas ou alguns destes contratos, até podem fazer sentido, em particular se não se esgotarem com o tempo político. Mas não proporcionam uma visão abrangente e coerente, nem um rumo, para o Ensino Superior. Os modelos de financiamento não são apenas uma forma de distribuir recursos. São um instrumento poderoso de atuação que permite estabelecer um verdadeiro acordo social de configuração de objetivos e de repartição de responsabilidades entre Estado, instituições de ensino, estudantes e demais parceiros.
Esta é uma reforma por fazer.
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