domingo, 17 de agosto de 2025

Politicamente incorreto








Verão. Férias. Deixei a realidade do lado de fora. Por luxo, necessidade ou inconsciência. Ainda assim chega até mim em pequenas doses, escorrendo pelas frestas, em fragmentos, atenuada. Feita mais de palavras lidas do que de sons e imagens. Palavras lidas, palavras escritas. Escritor, propósito, texto. Leitor, interpretação, reflexão, crítica.
Vejo uma notícia. Leio uma declaração. Com data. 31 de julho. Publicada numa página da internet uns dias depois, já em agosto. Declaração conjunta CRUP/CCISP – Ensino Superior português reafirma compromisso com a paz, a dignidade humana e o diálogo. Os autores estão, desde logo, identificados. São os órgãos que representam as Instituições Públicas, Concordatárias e Militares de Ensino Superior, que não todas as instituições de ensino superior portuguesas. 
A forma adotada é a de uma declaração, conjunta, conjugada, acordada. Já participei em escritas dessas, numa das minhas outras vidas. Sei como é difícil conjugar uma escrita sintética com a abordagem de temas complexos. Neste tempo de atenção estilhaçada, a capacidade de atração é inversamente proporcional ao tamanho do texto. Lembro-me disso ao escrever aqui, mas pouco importa. Procurar evitar interpretações erróneas. Decisões. O que manter e o que deixar de fora. O essencial e o acessório. O que ficaria bem mas não é imprescindível. Escrever. Cortar. Reescrever. Aparar. Escrita Bonsai.
Interrogo-me sobre o tempo e o propósito da declaração.
Último dia do mês de julho. As instituições de ensino superior entregaram-se à letargia dos dias quentes. Sem alunos, exceto uns quantos com prazos contados. Sem docentes, ou quase. Com menos investigadores. Com menos trabalhadores não docentes e não investigadores, os que ficam mantendo a máquina a funcionar, por vezes com trabalho redobrado. Com espaços vazios. Com espaços fechados. Não será, portanto, uma mensagem para dentro de portas. Será uma mensagem para a sociedade.
Último dia do mês de julho. Parte do país também entregue a férias. Outra parte a trabalhar para quem está de férias. Ainda outros a trabalhar, como sempre, ou apenas porque o seu ano se escoa de forma diferente. Os políticos a banhos. A silly season. As notícias sobre praias e gastronomia. Os incêndios, de novo, sufocando em tons de vermelho e cinza. 
O que seria tão urgente para justificar uma posição pública destas instituições? O que exige uma reafirmação, que não uma afirmação, do seu compromisso com a paz, a humanidade e o diálogo? Estariam estes valores em causa? Ameaçados? De fora? Ou de dentro? A quem se destina, de facto, a mensagem?
Volto à declaração. Quatro parágrafos apenas. Check. Certamente pensados, discutidos, debatidos e aprovados, que isto de reunir umas dezenas de instituições nem sempre é simples. Parágrafos escritos. . Sujeitos, como sempre, a interpretação. Sujeitos, inevitavelmente, à crítica. Afinal o que nos querem dizer? O primeiro, segundo e quarto apresentam estas instituições de ensino superior como espaços abertos e de multiculturalidade, acolhendo estudantes de proveniências e culturas diversas. Espaços de respeito e compreensão. Com a convicção, ou a esperança, de que este seja um contributo para um futuro melhor, à escala global, dentro dos princípios enunciados.
Sim. Há mais gente de origens diversas no ensino superior. Por outro lado, acredito que a vivência do ensino superior representa hoje uma fatia mais mais pequena da vida individual do que já representou. Não só em tempo vivido, mas sobretudo em tempo partilhado. Fruto da própria massificação ou democratização do ensino superior, como lhe queiram chamar, em que este deixou de ser objetivo e destino de vida. Resultado da coexistência e competição quotidiana com muitas outras dimensões da vida. Ampliado pela comunicação omnipresente, ao alcance dos dedos, com gente próxima ou longínqua, conhecida ou desconhecida. Há muitos outros espaços de interação e, de certo modo, a influência do ensino superior no percurso de cada um terá sido atenuada.
As universidades partilham os feitos dos seus antigos alunos. Certamente pela satisfação pelo percurso de alguém que se conhece, ou conheceu, e que, em determinado momento fez parte do dia a dia da instituição. Sem dúvida também para criar um efeito de associação da instituição ao sucesso alheiro, como que reclamando parte do êxito, e assim fortalecer a sua imagem. A mente deambula. Imagino sucessos. Empreendedor, inventor, medalhado, distinguido. Formado na Universidade X. A mente deambula para o tema da crónica. Imagino outros percursos. Títulos que não existirão. Perseguidor. Discriminador. Desumano. Fomentador de conflitos. Criminoso. Criminoso de guerra. Formado na Universidade X.
Mas voltemos à declaração. Falta ainda analisar o terceiro parágrafo. E é aí que vislumbro o verdadeiro propósito da comunicação. É, também aí, que continuo sem encontrar pistas para o momento escolhido. É, ainda, aí que vejo a declaração colapsar e tornar-se desprovida de sentido, falhando em toda a linha em relação aos valores apregoados. 
É com profunda preocupação que assistimos à escalada da violência em Gaza e noutras regiões, ao sofrimento humano que dela decorre e à erosão de valores que deveriam unir a comunidade internacional. A tragédia no Médio Oriente interpela-nos a todos.
Ou seja, é um comunicado obviamente sobre Gaza, o único nome em duzentas e uma palavras, sem assumir ser um comunicado sobre Gaza, mas procurando conforto num conjunto de valores que se aplicam a tantos sítios do mundo neste ano de dois mil e vinte e cinco do calendário que usamos por estes lados. Podia, de facto, referir-se apenas ao que está a acontecer lá. Mas não o faz e refere também, mas sem nomear, outras regiões, como se verá mais abaixo. Fica a sensação de receio de assumir, plenamente, o verdadeiro propósito. Politicamente correto? Não! Absolutamente incorreto... 
Voltemos, por instantes, ao momento. 31 de julho de 2025. Passaram 663 dias desde o 7 de outubro de 2023. Houston B. continuaria, 15912 horas, 954720 minutos, 57283200 segundos, 1,816 voltas ao Sol. Mas isso são leituras de outro livro. A pergunta persiste. Porquê agora? Haverá quem diga que mais vale tarde do que nunca. Haverá quem imagine pressões individuais, de grupo, ou de associação para uma tomada de posição. Haverá quem imagine o voluntarismo de uma instituição, e a impossibilidade de dizer que não de outras. Haverá, talvez, quem tenha juntado outros parágrafos, mencionando a motivação, mas diluindo o propósito de forma a afugentar possíveis críticas. Haverá quem pense no receio de relações em curso, com instituições israelitas, ou até questões de Estado, veja-se a hesitante e contraditória posição do Governo em tempos recentes. Mas vamos ao texto.
É com profunda preocupação que assistimos... 
Bom, ficamos a saber que as instituição que integram o CRUP e o CCISP estão preocupadas, tão só e apenas. Ocorrem-me muitas outras expressões, com cambiantes diversos, para além da preocupação, palavra de uso banal para muitos contextos. Podiam estar horrorizados, ultrajados, indignados. Recorrendo a um estereótipo da expressão inglesa de sentimentos, enquanto a tragédia ocorre, they are deeply concerned
... à escalada de violência ... 
Aqui as coisas pioram, porque a preocupação, profunda, não é com a violência, em consonância com os valores humanistas referidos, mas com a escalada da dita. A hierarquia do horror, qualquer que seja já a fasquia,  um limite entre o que causa preocupação e o outro. Isto sem ser claro qual é a escalada referida, a 31 de julho de 2025, depois de tudo a que já se assistiu, e aquilo que apenas se entrevê, ou imagina, sem testemunhos. Adicionalmente, parece ser apenas uma constatação de factos, a violência por si, sem vítimas, sem perpetradores, sem atores, sem origem.
... em Gaza... 
Eis o único elemento nomeado na declaração, que se transforma assim no seu verdadeiro, e único, propósito. Um local.  
... e noutras regiões, 
Regiões sem nome. Sofrimento sem rosto. Evitando que a declaração seja "apenas" e objetivamente sobre Gaza. Gaza como símbolo do sofrimento de "outras regiões"? Para quem sofre nelas não há símbolo, nem comparação. Qual é o medo afinal? Para quê o subterfúgio? Para quê considerar uns menos dignos de serem nomeados? Porquê a falta de coerência? Uns e os outros, como no filme.  Nós e eles, como na música. Ou ainda como Houston B, que partilhava as páginas do romance com alguém cujo nome a cidade esquecera.  Assim, ao correr dos dedos sobre as teclas, poderia nomear umas quantas regiões. A Síria, que já valeu uma plataforma para apoio a estudantes desse país, iniciativa do Presidente Jorge Sampaio. O Líbano e a Líbia. A Ucrânia e a Rússia. O Afeganistão, hoje inimaginável, que ficou sem imagens e sem voz, sem testemunhas. O Haiti que raramente faz manchetes deste lado do Atlântico. Myanmar, Sudão, Moçambique.  Mais valia terem assumido o verdadeiro intuito da declaração.
... ao sofrimento humano que dela decorre...
Sofrimento presente. Futuros adiados, condicionados. Futuros suprimidos, eliminados, liquidados.  
... e à erosão de valores que deveriam unir a comunidade internacional. 
A comunidade internacional, feita por países. Os países, feitos por pessoas. Valores nem todos partilhados, ou pela menos, não na mesma hierarquia. Como é patente na realidade atual. Como é evidente através da história. Apesar de tudo, há momentos, e regiões, em que a paz, o respeito e prosperidade se instalam e permanecem por períodos mais ou menos alargados. Mas partir do princípio que esses se sobrepõem a tudo, num mundo tão desigual, é pura ilusão. 
A tragédia no Médio Oriente interpela-nos a todos.
Voltamos ao verdadeiro propósito, agora numa expressão um pouco mais alargada: o Médio Oriente. O que impeliu estas instituições, a 4000km de distância do leste do Mediterrâneo, de fazer esta declaração pública. Interpeladas, também elas, irão tomar alguma inciativa? 
Verão. Férias...

sábado, 24 de maio de 2025

Umas eleições para o Conselho Geral



Já por aqui passaram programas partidários, em especial em tempos de eleições legislativas. Desta vez, o olhar é sobre outras eleições e outros programas, tenho como objeto o Conselho Geral da Universidade pública onde trabalho.
Na qualidade de não docente e não investigador a tempo parcial, apenas posso participar, enquanto eleitor, na eleição do único não docente e não investigador desse órgão de governo. No entanto, entendo que o Conselho Geral é, ou deveria ser, mais do que a mera de soma de grupos com diferente vínculo à instituição. E entendo que não há, ou não deveria haver nesse órgão, assuntos do interesse de apenas um dos grupos segregados para efeitos eleitorais (membros docentes e investigadores, não docentes e não investigadores, estudantes). 
Deste modo, o olhar que se segue abrange os programas de candidatura disponíveis na página do Conselho Geral e não outros que possam ter sido divulgados pelas respetivas candidaturas. Dando valor à palavra escrita, que resultou de reflexão e de opções. Palavras que são, naturalmente, sujeitas a interpretações, e, não menos importante, suscetíveis de ser comprovadas ou contrariadas pelos atos.
Claro que um processo eleitoral não é feito só, ou sobretudo, de programas. É feito por pessoas, que se organizaram para discutir, que assumiram a vontade de participar, que irão agir uma vez eleitas, e que deverão prestar contas. Sobre as pessoas terei também opiniões, mas não é esse o foco desta reflexão pública.

Vamos então por partes, e pela ordem em que as candidaturas surgem na página institucional.

Colégio dos Professores e Investigadores. Duas listas. Dentro do habitual. Propício a lógicas de “Uns” e os “Outros”. Escasso, em termos de pluralidade e de discussão. Mas estas duas listas, dois manifestos, dificilmente poderiam ser mais diferentes na abordagem adotada.
UA 2030: Uma Universidade Inovadora, Sustentável e Plural. Leio o programa e não vejo um programa para um Conselho Geral. 
Não reflete sobre as competências do órgão, o seu desempenho passado, o desempenho preconizado ou a sua interação com os outros órgãos da instituição. Não menciona uma das primeiras competências a assumir pelos eleitos, ainda mesmo antes do órgão plenamente constituído: a cooptação das personalidades externas. Também não aborda a vertente supra institucional, seja através da ligação aos órgãos congéneres de outras instituições ou no quadro da eternamente prevista revisão do Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIES). 
Menciona o incentivo à implementação de ações pelos órgãos executivos, mas apresenta um manifesto essencialmente executivo, com é patente nos compromissos enunciados. Promover a implementação de programas, criar condições para desenvolver carreiras, assegurar a manutenção do edificado, garantir o reforço da comunicação, assegurar o fortalecimento de parcerias, desenvolver um plano para as artes e culturas, estreitar a relação com os países africanos de língua portuguesa, estabelecer um balcão único de inovação e parcerias, são alguns dos muitos exemplos.
Paradoxalmente, não refere, sequer, a eleição próxima do Reitor, a um ano de distância, mas que por aí paira há muito, e que é, sem sombra de dúvida, a competência que, infelizmente, mais tem condicionado a generalidade das eleições para os Conselhos Gerais. E é ao Reitor que compete a apresentação dos planos estratégicos e de ação.
Não parecendo, como referi, um manifesto para um Conselho Geral, expressão aliás só referida no cabeçalho e na secção com a visão e objetivos, não explicita ao que vem.

Para mais sobre a ligação entre Conselhos Gerais e a eleição de Reitores ler, por exemplo O ovo, a galinha, a omelete e o empadão, escrito já em 2017 mas que não perdeu a atualidade ou outras reflexões sobre Conselho Gerais.

UA50 – 50 Anos de História, 50 Anos de Ambição. Leio o programa e encontro, sobretudo, uma reflexão sobre a estrutura e o ambiente de governação da instituição.
Há pontos comuns em ambas os manifestos, de que são exemplo as questões do edificado, das carreiras, ou das parcerias. No entanto, estes aspetos e outros de natureza mais executiva são apresentados em segundo plano e de forma matizada, com referência ao papel que neles pode competir ao Conselho Geral. Surge assim como algo contraditório, a referência específica ao reforço das estruturas de apoio à investigação e à cooperação.
No entanto, o foco incide sobre as questões de governança interna, incluindo disposições que estão na esfera estatutária da responsabilidade do Conselho Geral, e um posicionamento face a algumas das preconizadas alterações ao RJIES, abordando aspetos formais, mas também o ambiente vivido e percecionado, remetendo para segundo plano a abordagem para outras áreas de intervenção mais executiva, com matizes pelo papel que nelas pode caber ao Conselho Geral. 
Esta candidatura pretende distanciar-se da habitual ligação entre estas eleições e as do próximo Reitor, escolhendo para isso o realce, a negrito e itálico, que não conta com o "envolvimento de putativo(a)s candidato(a)s a Reitor. Na mesma linha, apresenta-se como um movimento plural e diverso. Neste quadro, será de admitir que, havendo vários candidatos a Reitor, estes eleitos não votem, necessariamente, em bloco.
É dado maior destaque às competências próprias dos eleitos e do órgão. No entanto, a cooptação das personalidades externas é encarada numa perspetiva utilitária, de pessoas ditas influentes para fomentar a competitividade da instituição e diversificar a capacidade de financiamento. Esta tem sido, a meu ver, uma das fraquezas das instituições, e que revelam um défice de real abertura à sociedade. É uma visão de um sentido, de ajudar a ter mais meios, em lugar de uma processo de trazer outras visões para a Universidade, que questionem, que desafiem, que causem desconforto, que façam sair dos muros mentais. Também é referido, e aqui bem, o papel fiscalizador que o Conselho Geral deve assumir e que tem como competência própria.
Curiosamente, esta candidatura optou por apresentar o texto em português e inglês.

Representantes dos Estudantes. Sem informação sobre as candidaturas na página do Conselho Geral. Incoerências de um sistema que para um órgão tem duas comissões eleitorais. Juntos, mas separados.  Talvez por real falta de coesão institucional. Talvez como resultado de cedências ou de poderes adquiridos. Talvez por ilusões de autonomia ou autossuficiência. Talvez por vontade de controlo. Não é de agora. Mas não tinha de continuar a ser assim.  

Colégio dos não docentes e não investigadores. Uma lista. Sem escolha: 
Juntos somos mais UA 
Um manifesto curto, fechado, não passando das questões de "classe", muitas das quais não serão do âmbito do Conselho Geral, não serão sequer do âmbito do Reitor, mas sim do Administrador. Alguns exemplos. Representar os interesses do pessoal não docente e não investigador, formação profissional, mobilidade entre serviços, preocupação sobre a comunicação entre os órgãos e estes trabalhadores e não nenhuma perspetiva transversal, reconhecimento.
É pouco. Não permite vislumbrar o contributo efetivo para questões e decisões transversais à instituição, baseados no conhecimento e experiência própria de muitos não docentes e não investigadores.
De tempos a tempos volta a esta citação, já com vinte e cinco anos, mas não encontro aqui este espírito.
"Yet, ironically, many staff members are far more loyal to the university than students or faculty. In one sense this is because they are more permanent than students and faculty. Students are essentially tourists, spending only a few short years on the campus, and seeing relatively little of its myriad activities. Similarly, many faculty members view their appointments in the university as simply another step up the academic ladder. Their presence at and their loyalty to the institution is limited, usually outweighed by their loyalty to their disciplines and their careers. In contrast many staff members spend their entire career at the same university , although they may assume a variety of roles. As a result, they not only exhibit a greater institutional loyalty than faculty or students, but they also sustain the continuity, the corporate memory, and the momentum of the university. Ironically, they also sometimes develop a far broader view of the university, its array of activities, and even its history, than do the relative short-timers among the faculty and students." (J. Duderstadt, 2000).

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Separação de poderes

 
Governação e Administração.
Separação de poderes.
Leituras cruzadas.

The university is indeed a complex institution, but it need not be complicated. Effective university governance is eminently possible if it is done on the basis of clear principles that reflect the university’s historical evolution and purpose rather than on murky management strategies and ad-hoc muddling through. University governance is difficult not because academic personalities are idiosyncratic (although often they are), or because goals of administration and faculty conflict (although sometimes they do), but because university government is often poorly conceived by those who design it and participate in it.

Separating Powers at the University: Applying Constitutional Law to Internal Academic Governance
Bruce Pardy, Education and Law Journal, Vol. 20, No. 243, 2011.

Yes, I do think there is a real dilemma here, in that while it has been government policy to regard policy as the responsibility of Ministers and administration as the responsibility of officials, questions of administrative policy can cause confusion between the administration of policy and the policy of administration, especially when responsibility for the administration of the policy of administration conflicts or overlaps with responsibility for the policy of the administration of policy.

Pela voz de Sir Humphrey Appleby, em 
The Complete Yes Minister, Jonathan Lynn e Antonhy Jay, BBC Books.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

O pior de dois mundos

Publicado no Expresso de 14 de fevereiro.
O Governo quer mudar o processo de escolha dos Reitores das Universidades, acabando com a atual eleição pelo Conselho Geral que, sendo de pequena dimensão, tem sido instrumentalizado por esta finalidade, como os próprios protagonistas comprovam. Em nome da representatividade, o Governo propôs inicialmente uma eleição alargada a todos os trabalhadores da instituição, alunos e antigos alunos (melhor, antigos diplomados, independentemente da sua ligação e por toda a vida!), ainda que com pesos diferentes para cada grupo. Mas o Governo guinou, propondo afinal que o tal Conselho Geral escolha dois candidatos, os quais serão depois votados pela boa da comunidade, relegada assim a uma espécie de 50-50. Um processo mais longo e burocrático, a efetuar em todas as instituições de ensino superior a cada quatro anos. Uma solução incoerente e que nada resolve, a meio da ponte, a lembrar a criação das Universidades-mais-ou-menos-fundação. O pior de dois mundos, a não ser que o Parlamento revele melhor senso.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Quem escolherá o Reitor?

O texto anterior incidia sobre o passado e presente desta matéria. Este é sobre um dos futuros possíveis, aquele que é proposto pelo Governo.
A proposta abandona o modelo “executivo” de eleição por um Conselho Geral reduzido, e o paralelismo, feito à data, entre modelos de gestão empresarial e de instituições de ensino superior. Não retoma a eleição do Reitor por uma Assembleia alargada, como a consagrada na Lei da Autonomia de 1988, ou por qualquer outro órgão, já existente ou a criar. Não remete para a participação de entidades ou personalidades externas neste processo, como uma representação de partes da sociedade interessadas na instituição. 
Em "prol da representatividade", propõe um modelo de plebiscito a efetuar no seio da respetiva comunidade. Comecemos então por aqui, pela comunidade, um conceito omisso do RJIES, na versão atual ou proposta, e que surge apenas inserido no processo de eleição do Reitor. Convenhamos que é escasso, para comunidade. Mas qual é, então, a sua composição? Docentes e investigadores, alunos, não docentes e não investigadores. Até aqui, tudo óbvio. Mas, acrescenta os antigos alunos. Desde logo a merecer reflexão e suscitar interrogações várias. Porquê? Representando o quê? Com que proximidade ou vivência da dita comunidade, com quem não interagem, certamente, da mesma forma?
Consultei vários estatutos de universidades e, também nestes, é omissa a definição de comunidade. Em todos os que vi, exceto num, o da Universidade de Aveiro, nos quais, por mérito de quem lhe deu forma e substancia jurídica, se dedica um artigo a este tema. E permite conceder aos antigos estudantes um estatuto similar ao de membro da comunidade "em vertentes específicas que o justifique". Similar porque não o detêm à partida, sendo, de facto, distintos dos membros da comunidade.
Mas voltemos à proposta: a participação dos antigos alunos na eleição do Reitor. De alguns antigos alunos, que não todos, como resulta do pormenor da proposta. Viajemos por mundos paralelos, para melhor ver o seu alcance. Imaginemos pois vários percursos.
Aluno de uma universidade durante quatro anos, mas que abandonou os estudantes e foi trabalhar. Não pode votar. O direito ao voto está condicionado ao sucesso académico, traduzido na conclusão de um grau! Mais valia a proposta referir-se a diplomados em vez de antigos alunos, mas talvez não fosse politicamente correto numa proposta política.
Aluno da mesma universidade mas apenas ao nível de mestrado, tendo obtido o diplomas nos dois anos de duração do curso, há uma década atrás. Pode votar.
Aluno em situação semelhante, mas tendo obtido o grau há quatro anos. Não pode votar! Confusos? Pois, a proposta prevê um período de nojo com a duração mágica de cinco anos, durante os quais, pelos vistos, não faz parte da comunidade. Desliguem-se primeiro, para depois votar!
Aluno com licenciatura por uma universidade, mestrado por outra e doutoramento por uma terceira. Conquanto os diplomas tenham sido obtidos há mais de cinco poderá contribuir para eleger três Reitores, um em cada instituição. Situação semelhante, imagino, para quem obtenha um diploma num grau conjunto concedido por várias instituições.
Aluno licenciado em 1987, sem qualquer ligação à Universidade desde então, hoje próximo da aposentação. Tem direito a votar! E a continuar a fazê-lo durante o resto da vida.
Antigo trabalhador numa instituição. Não tem direito ao voto. A não ser que também aí tenha sido aluno. Umas décadas de trabalho e conhecimento institucional e do ensino superior, não relevam. Uns poucos anos como aluno, algures no tempo, sim!
Escapa-me a racionalidade de tudo isto, que é, verdadeiramente, a questão de primeira ordem.
A um segundo nível há que mencionar, brevemente, os pesos de cada um dos corpos eleitorais. Brevemente porque é necessário evitar a armadilha de dar o figurino como aprovado, e dedicar o tempo aos ajustes das mangas e da bainha. Temos então um mínimo de 30% para os docentes e investigadores, de 25% para os estudantes, de 25% para os diplomados elegíveis, e de 10% para os não-não. Ficam assim 10% para cada instituição ajustar, num exercício de autonomia pouco alargada. Esta é matéria para regatear, fazer concessões, verdadeiras ou encenadas, trocar influências, medir o pulso aos movimentos e às associações de estudantes e de antigos alunos. Em público, na Assembleia da República, e em cada instituição se esta proposta adquirir estatuto legal.
E depois, há ainda um terceiro nível, o da organização de um processo eleitoral destes, desde a localização e recenseamento de todos os antigos estudantes vivos e a organização de um processo de votação nas quatro partes do mundo.
Duas notas finais.
Na proposta do Governo, a eleição tem os moldes acima descritos, mas a aprovação dos planos de médio prazo e de ação elaborados pelo Reitor compete ao Conselho Geral. É assim possível que o Reitor eleito veja os seus planos não serem aprovados.
Sobre o peso dos não-não, aos quais pertenço, não posso deixar de recordar um texto que li em tempos:
"Yet, ironically, many staff members are far more loyal to the university than students or faculty. In one sense this is because they are more permanent than students and faculty. Students are essentially tourists, spending only a few short years on the campus, and seeing relatively little of its myriad activities. Similarly, many faculty members view their appointments in the university as simply another step up the academic ladder. Their presence at and their loyalty to the institution is limited, usually outweighed by their loyalty to their disciplines and their careers. In contrast many staff members spend their entire career at the same university , although they may assume a variety of roles. As a result, they not only exhibit a greater institutional loyalty than faculty or students, but they also sustain the continuity, the corporate memory, and the momentum of the university. Ironically, they also sometimes develop a far broader view of the university, its array of activities, and even its history, than do the relative short-timers among the faculty and students." (J. Duderstadt, 2000, Presidente Emérito da Universidade do Michigan). 
Assim, não me parece que estas reflexões sejam apenas influências dos meus encontros recentes com Sir Humphrey Appleby, em forma de livro.

Nota: Este texto foi escrito antes de conhecer eventuais alterações à proposta do Governo, que terá hoje sido aprovada em Conselho de Ministros.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Quem escolhe o Reitor?


Nota prévia: sou um não-não (não docente e não investigador, na terminologia do RJIES) numa universidade, pelas minhas contas já lidei com oito mandatos reitorais, e acompanhei de perto a discussão, aprovação e implementação do atual Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES).
A pergunta do título tem, na realidade, duas respostas: a formal e a de facto.
Na forma, o Reitor é eleito por um Conselho Geral, um órgão com não mais de 35 membros, dos quais mais de metade dos são professores e investigadores eleitos, pelo menos 15% são estudantes eleitos e pelo menos 30% são personalidades externas cooptadas pelos eleitos.  Pode ainda incluir representantes eleitos pelos não-não, o que tendo em conta a dimensão e percentagens referidas, se traduz normalmente numa única pessoa.
No entanto, a resposta formal não traduz a realidade mais profunda, aquela que revela que o Reitor é eleito, em muitos casos, por si próprio! Sim, porque começa por ser candidato a candidato a Reitor. E é nesse período que promove a constituição de listas para o Conselho Geral e se aproxima dos estudantes ou dos seus representantes, com o intuito de garantir não só uma participação efetiva no processo de cooptação, como o objetivo final de assegurar a maioria dos votos de que necessitará.
A constituição do Conselho Geral assume, assim, um papel de primárias. E esta realidade ganha contornos mais nítidos, e agrestes, quando existe uma bipolarização, que pela sua natureza dispensa geometrias mais flexíveis e acentua uma lógica de “uns” e “outros”.
Não se trata de meras conjeturas de observador, mas antes processos assumidos por muitos dos intervenientes, desde os próprios candidatos a membros dos Conselhos Gerais e academias, e devidamente documentados. Veja-se o extrato de uma entrevista da então Reitora da Universidade de Évora, Ana Freitas (AF) ao Diário de Notícias (DN):
DN - O que é que mudou da primeira candidatura para a segunda. Aprendeu a fazer lóbi? 
AF - Não. Nós somos eleitos pelo Conselho Geral, que tem 25 pessoas. E fiz uma lista para o Conselho Geral, coisa que não tinha feito da primeira vez. Apresentei o programa, discuti-o e arranjei apoiantes, o que não tinha feito, achava conscientemente que bastava apresentar um programa e que as pessoas o iam ler, que votavam no que achavam melhor. 
DN - Tem de se mexer uns cordelinhos para garantir a votação. 
AF  - Sim. E duvido de que as pessoas, tanto a nível nacional como internacional, leiam os programas de governo e os programas dos partidos antes de votar. Na universidade é um bocado a mesma coisa.
Este é um dos extratos e reflexões que deram origem a um outro texto deste blog, em 2017, intitulado "O ovo, a galinha, a omelete e o empadão”. 
Este é um dos retratos possíveis de uma instrumentalização que enfraquece sobremaneira o Conselho Geral e a sua credibilidade, reduzindo-o a uma certa relevância formal e irrelevância institucional. Um aspeto tanto mais grave quanto uma das suas funções é, justamente, apreciar os atos do Reitor. 
O confinamento da eleição do Reitor a um grupo tão reduzido de pessoas, por oposição às anteriores Assembleias de composição muito alargada, suscitou, desde sempre, críticas de opacidade e de falta de democraticidade. Ora o RJIES está, finalmente, em processo de revisão, e uma das alterações propostas pelo Governo, como seria previsível, incide precisamente sobre o processo de eleição do Reitor.
Quem elegerá, então, o Reitor?
Uma pergunta que fica para o próximo texto.