É sempre arriscado comentar excertos do que alguém diz. Por isso procuro evitá-lo de modo a que as "Notas" possam ser de mais além, e não apenas da superfície. Mas nem sempre é possível ter acesso integral às mensagens, sem montagens, sem intermediação. Esta é uma dessas situações. Correrei o risco de uma interpertação incompleta, mesmo incorreta.
Desta vez foi Pires de Lima, sobre a investigação que se faz, tema muito em foco (citado no Expresso de hoje):
"Uma boa parte da investigação é financiada por dinheiros públicos e não chega à economia real. Não chega a transformar o conhecimento em resultados concretos que depois beneficiem a sociedade como um todo."
Terá ainda dito não ser possível "alimentar um modelo que permita à investigação e à ciência viverem no conforto de estar longe das empresas e da vida real". Terá ainda referido o elevado número de doutorados em Portugal e o contraste com o baixo número de doutorados nas empresas.
Terá preconizado a necessidade de "(...) criar um modelo de estímulos e de sinais que ligue a investigação, a ciência, a educação, à vida concreta e real das empresas e que se traduza em produtos, marcas e serviços que possam fazer a diferença no mercado e devolver à sociedade o investimento que fizemos", bem como a incorporação de uma educação para o empreendedorismo nas escolas.
Vamos por partes, porque com os mesmos factos eu chego a conclusões muito diferentes. O primeiro problema, e de monta, não é, pelo menos em grande parte, a investigação financiada por dinheiros públicos não chegar às empresas. O problema é que as empresas, desde logo, não financiam uma "boa parte da investigação". O mesmo se pode referir em relação ao baixo número de doutorados nas empresas. Ora o "homem" da economia, das empresas, do mercado, é lesto a colocar o problema apenas de um lado: as universidades não investigam o que é preciso; os doutorados não têm as características que as empresas querem. Eu diria que as empresas, muitas empresas não podem, não querem ou não precisam (razões distintas para setores e empresas distintas) de investir em investigação e em investigadores.
Outra questão, também fundamental: o papel da investigação publicamente financiada. Nesta visão, como em muitas outras, a investigação deve ter utilidade a curto prazo, deve ser o mais aplicada possível. Nestes tempos medidos em microsegundos, preenchidos por hipersolicitações e habitados por todos nós, seres com pouco tempo para pensar, o Sr. Ministro deve ter-se esquecido que para a navegação orientada através das estrelas foi preciso muita investigação "inútil", que permitiu compreender a posição e movimento dos astros, a sua relação com o nosso planeta, o modo de interligar pontos à superfície. Ou que para produzir telemóveis e computadores alguém, muitos, muito antes, estudaram minerais, estudaram compostos, estudaram a radiação, para compreender. As utilizações vieram noutras épocas, por outras gentes. O telemóvel é um bom exemplo da quantidade e qualidade de conhecimento inicialmente não aplicado (http://notasdasuperficie.blogspot.pt/2012/06/o-que-vemos-ao-olhar-para-um-telemovel.html). Este é um papel singular das universidades. Do interesse público.
Terceiro ponto: a formação de doutorados e o emprego. O percurso de doutoramento é um percurso de desenvolvimento de capacidades de investigação de forma autónoma, alargando o conhecimento disponível. Como tal, segue um processo próprio e tem um tempo próprio. Naturalmente que pode incidir sobre partes de problemas reais, das empresas, do meio natural, da sociedade. Mas não unicamente e não dando acesso, necessariamente, a determinado tipo de emprego.
Mais haveria para dizer sobre a vida "real" das empresas ou sobre a vida "real" da investigação "confortável". Ou sobre o fabrico do "homo imprenditoris", desde o berço até à criação de sucesso, contraditoriamente, talvez, sempre apoiado de fundo em fundo, de estímulo em estímulo, de curso em curso. Mas fiquemos por aqui.
Não sei se "eles" sabem. Sei que o mundo deles não é o meu. E espero que não seja o de muitos mais.
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