terça-feira, 29 de outubro de 2024

Vamos falar de propinas

 






Tendo a olhar com prudência para escritos em espaço fortemente limitado, como é o caso dos jornais em espaço físico. Sei como é difícil abordar questões complexas nesses meios, com o risco inerente de simplificação excessiva. Sei que as escolhas do que fica dentro e o que fica fora, e das próprias palavras utilizadas, podem induzir diferentes leituras. Mas estou habituado a lidar com limites impostos ao número de palavras ou carateres de, a fazer escolhas, a praticar uma escrita a que chamo bonsai, procurando aparar, mantendo a forma e vitalidade. No fim, a responsabilidade primeira da mensagem, é do autor.

Vem isto a propósito de uma leitura recente e da reflexão que me suscitou. Foi no fim de semana passado que, enquanto folheava o Expresso, como habitualmente, me detive num artigo sobre o papel do ensino superior como elevador social. Da autoria de Luís Cabral, professor de Economia na Universidade de Nova Iorque, abordava as dimensões de acesso, económica e social. Chamou-me a atenção, principalmente, a vertente económica. Pelo conteúdo, pela forma, pelo tom. Pelas escolhas.
Concordo com o ponto de partida enunciado. “O problema económico é muito mais do que as propinas: entre alojamento e alimentação e livros e outras despesas, o custo pode chegar a 900 euros mensais.”. Acredito que isto é hoje consensual na generalidade dos meios. Um facto acentuado por anos de descida do valor máximos das propinas e de subida extremada, e muito superior, dos custos com a habitação, a para de um período recente de inflação elevada.
Assim, estranho a afirmação que se seguia de imediato. “A ideia de que o problema económico se resolve com propinas baixas ou nulas, por melhor intencionada que seja, não faz sentido.”. Não me parece que os defensores de propinas baixas ou nulas afirmem que tal resolve o problema económico. Não é isso que tenho ouvido. Não é por isso que continuam a ser um ponto de debate. Talvez tenha sido assim no passado, mas e, também, por uma questão de modelo de sociedade e de repartição de bens e de custos. 
Prosseguindo. “Mais importante ainda, as propinas baixas ou nulas tornam a universidade pública um subsídio aos ricos à custa do contribuinte médio. Estamos nós aqui com taxas de IRS altas e crescentes para depois desfazer a progressividade da tributação com um sistema altamente regressivo.”. O nosso modelo de impostos assenta, de facto numa tributação progressiva dos rendimentos, e não num pagamento diferenciado e progressivo em cada acesso a um serviço público, sejam eles de educação, saúde, justiça, ou de infraestruturas.  Não é para mim claro se o autor preconiza um modelo de taxação mais elevada de acesso, progressivo, em substituição ou em conjugação com os impostos sobre o rendimento. 
Daqui ao que se segue é um pequeno salto, em que o autor não se coíbe de qualificar a situação e os seus defensores, antes de avançar para “a” solução, determinística e única. "É ineficiente, é injusto, é apenas justificável ou por ignorância ou por um populismo (neste caso de esquerda) que tem de ser denunciado. Cobrando propinas a sério, pelo menos ao valor de custo, o sistema público encaixaria um bolo de receitas mais do que suficiente para apoiar os estudantes economicamente desfavorecidos, não só dispensando-os do pagamento de propinas, como também atribuindo um estipêndio condigno com a vida de estudante longe de casa (o que é frequentemente o caso)."
Há quem tenha poucas dúvidas e raramente se engane, o que não é o meu caso, mas parece ser o de alguns economistas. O que não cessa de me espantar num domínio, por excelência, de construções sociais e de interação entre indivíduos, felizmente diversos, com espírito crítico uns mais do que outros, anseios e visões diferenciadas. 
Voltemos à substância.
Olho em redor. Em Inglaterra e nos Estados-Unidos são praticados valores de propinas substancialmente elevados. Quem pode, como sempre acontecerá, paga à cabeça, a pronto. Depois, nesses países, paga quem tem acesso ao crédito, contraindo assim uma dívida que se prolonga por décadas, com óbvios custos de disponibilidade financeira e, portanto, de oportunidade. E com os riscos inerentes, bem reais, de crédito malparado, de uma bolha de dívida, ou até da transferência de carteiras de dívida para fora da esfera pública. Não consta que sejam dos países em que o valor das propinas mais reverte para o acesso de outros ao sistema de ensino superior.
Olho em redor. Na Áustria, Alemanha, França, Finlândia, e República Checa não existem propinas ou têm um valor residual. Não são, sequer, os únicos países da Europa em que tal acontece. Aliás, em quase todos as propinas estarão muito distantes do preço de custo. Ignorantes? Populistas? Ou com uma visão diferente para a sociedade? Que deve ser debatida, que importa debater, seriamente, sem simplificações e qualificativos abusivos. 
Continuemos, na tentativa de perceber o argumento. Propinas pelo menos ao valor do preço de custo. Pelo menos. Portanto, possivelmente, até mais, à laia de imposto. E quanto ao preço de custo? Aqui, será necessária uma análise que permita estimar e atualizar os preços reais do ensino universitário. Tarefa mais difícil do que possa parecer, em instituições que combinam muitas funções, com partilha e segmentação de recursos, e com uma contabilidade que pode não representar rigorosamente todos estes domínios. Um custo que será necessariamente diferente de instituição para instituição, em função do corpo docente, dos serviços de apoio, dos serviços adicionais para os estudantes, da dimensão, tipologia e idade do edificado. Um custo que, adicionalmente, variará no tempo, ano a ano, em função de recrutamentos e cessações, de evolução dos ativos, do próprio número de estudantes.
E quanto à redistribuição para quem necessita? As instituições são assimétricas em relação aos estudantes que as frequentam e, portanto, ao balanço entre deve e haver, entre quem pode pagar e quem necessita de apoio. A que se somam as assimetrias regionais em termos de custo de vida. Passarão, assim, as propinas a ser receitas do Estado, que ficará encarregue da redistribuição? 
É tempo de concluir. “Na minha opinião, tanto o problema da admissão à universidade como o pagamento económico seriam facilmente resolvidos se houvesse mais vontade política e menos demagogia.”. Não sei se os problemas seriam facilmente resolvidos. Concordo quanto à necessidade de menos demagogia, incluindo de quem tem acesso ao espaço público.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Consulta pública, contributo público

Em 2006 e 2007 acompanhei de perto, por dever de ofício, as propostas e finalização do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior. Em 2008, apoiei os trabalhos da Assembleia Estatutária da Universidade de Aveiro, que culminaram com a aprovação da transformação da instituição em fundação pública com regime de direito privado e, subsequentemente, já em 2009, com a negociação do contrato fundacional e a aprovação dos estatutos ao abrigo do novo quadro legal. Foram tempos desafiantes, de estudo, de discussão aprofundada, de escritas partilhadas, de procura da compatibilização entre princípios, modelo e forma, do sentimento de se escolher e construir um futuro, de entre muitos possíveis. Após esse período, e durante meia dúzia de anos, lidei de perto com a implementação e a vida institucional sob o novo modelo de governo e gestão então aprovado.

Numa entrevista de 2000, pela mão de Clara Ferreira Alves, e recuperada pelo Expresso, em 2016, por coincidência ano de mudança do meu papel na instituição, João Lobo Antunes afirmava "Se há um capital de experiência e reflexão, ele tem de ser partilhado, isso é suprapartidário, é um magistério. Nunca seria um político. Primeiro, porque sou pragmático, gosto de resultados limpos. Segundo, tolero mal a crítica. E terceiro, gosto de ser eu a selecionar as situações."

Procurando seguir esta linha, às vezes com mais esforço do que noutras, partilhei, e partilho aqui também, a experiência e reflexão de anos, na forma de um contributo efetuado no âmbito da consulta pública, recentemente concluída, do Projeto de Alteração dos Estatutos da Universidade de Aveiro

Para quem tiver interesse na matéria.

Nota prévia

1. O presente contributo é apresentado no âmbito da consulta pública em curso relativa à Proposta de Alteração dos Estatutos da Universidade de Aveiro, doravante designada Proposta.

2. O contributo incide, predominantemente, sobre as opções políticas e de organização da Universidade contidas na Proposta, bem sobre algumas ausências.

3. O contributo segues uma estrutura e sequência semelhantes às da Proposta, com o intuito de facilitar a sua leitura em articulação com a Proposta e possibilitar fácil referenciação.

Do preâmbulo

4. O preâmbulo confere destaque a alguns aspetos da Proposta, como a criação de unidades transversais nos três eixos da missão da UA, o aumento da representatividade das unidades orgânicas nos Conselhos Científico e Pedagógico, a criação do Conselho de Diretores, a introdução de Comissões Científicas e Comissões Pedagógicas nas unidades orgânicas de ensino e investigação, e a alteração do processo de eleição do Diretor destas Unidades. 

5. Há ainda outros aspetos de relevo como a alteração da presidência dos Conselhos Científico e Pedagógico, autonomizando-a do cargo de Reitor.

6. Numa apreciação global, considera-se que a Proposta traduz uma apreciação negativa do atual modelo de organização e governo, preconizando uma reversão ao modelo prévio ao Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), dentro do quadro atual vigente.

7. Reversão, contudo, parcial. 

8. Parcial porque não abrange a composição do Conselho Geral, aspeto em que existe ainda capacidade de opção, como se abordará adiante.  

9. Parcial também, porque não contempla a criação de um órgão de composição alargada, com representação dos vários corpos da Universidade e competências consultivas, que permitiria um debate alargado das políticas institucionais, podendo assim fomentar o sentimento de comunidade, bem como a representatividade das pessoas, e não apenas das unidades orgânicas.

10. Teria sido relevante dispor de uma medida do impacto da Proposta, designadamente no que se refere à alteração do número de órgãos e cargos, com o inerente acréscimo de carga na dimensão da gestão institucional.

11. Tal medida seria, naturalmente, uma estimativa, até porque a dimensão de alguns dos órgãos é matéria regulamentar e não estatutária.

Estrutura orgânica

12. A proposta de alteração à estrutura orgânica, contida no artigo 8º, incide, principalmente, na inclusão de três novos Institutos na estrutura orgânica. 

13. Na alínea c) do seu número 5 são referidas, como unidades básicas de cooperação, “oficinas de transferência de tecnologia e unidades de índole similar”, unidades que não constam de outros artigos da Proposta. 

14. Não identifiquei qualquer referência a estas oficinas no Plano Estratégico vigente, no Plano de Ação para o ano em curso, no site da UA, ou através de uma pesquisa mais genérica. 

15. Não é, assim, claro a função e enquadramento organizacional de tais unidades e, designadamente, se serão adstritas a unidades orgânicas de ensino e de investigação, a unidades de investigação, ou possuirão um cariz diferenciado. 

16. Sugere-se que no ponto 9, se leia: “As unidades orgânicas de ensino e investigação”, em conformidade com a epígrafe e conteúdo da listagem contida no Anexo II.

Formação dos órgãos

17. Existindo órgãos colegiais únicos para a instituição e órgãos colegiais de unidades integrantes da estrutura orgânica, sugere-se a adaptação, em conformidade, do número 2 do artigo 13.º, uma vez que o “justo equilíbrio das diversidades unidades orgânicas” não se aplicará aos segundos.

18. Considera-se desadequada a inclusão, no mesmo número, de uma menção específica à equilibrada representatividade de docentes e investigadores, e apenas destes, desde logo quando existem outros corpos presentes em diversos órgãos colegiais, e aspetos específicos de natureza e equilíbrio de composição, como sejam os casos dos Conselhos Científico e Pedagógico. 

19. Propõe-se adicionar um princípio estruturante, condizente com o espírito de uma comunidade universitária una, relativo à condução dos processos eleitorais, consagrando que cada processo eleitoral deve ser conduzido por uma única comissão eleitoral, ao invés da prática de segregação dos processos eleitorais de membros-estudantes.

20. Tal segregação fere sobremaneira o espírito de comunidade, induzindo uma divisão em lugar de promover um sentido de pertença.

21. Adicionalmente, e numa perspetiva operacional, tal segregação prejudica a eficiência dos processos, como a experiência passada ilustra de forma abundante e nem sempre dignificante.

Conselho Geral

22. A Proposta não apresenta alterações à composição do Conselho Geral. 

23. Um dos temas de debate a propósito do RJIES e da sua eventual revisão, diz respeito à eleição do Reitor e à tomada de decisão em matérias estratégicas, ambas da competência de um número reduzido de pessoas, não superior a 35.

24. Esta matéria ganha especial acuidade no caso da Universidade de Aveiro, que, com 19 membros, tem um dos Conselhos Gerais de menor dimensão e próximo do número mínimo legalmente fixado.

25. Admite-se que a comunidade da UA partilha um sentimento de maior participação, quer no processo de eleição do Reitor, quer nas restantes matérias de competência do Conselho Geral, especialmente nas de maior pendor estratégico.

26. Considera-se que tal sentimento está alinhado com a perspetiva global que enforma esta Proposta como regresso, na dimensão possível, à situação pré-RJIES.

27. Assim, propõe-se fixar a dimensão do Conselho Geral da Universidade de Aveiro em 36 membros, dimensão máxima estabelecida no RJIES.

28. Esta alteração traduz-se num aumento de 84% dos membros do Conselho Geral.

29. Propõe-se, desde já, a seguinte composição, de acordo com os parâmetros definidos pelo RJIES e pela capacidade de decisão institucional, mormente no que se refere à inclusão de trabalhadores não docentes e não investigadores: 18 representantes dos docentes e investigadores, 5 representantes dos estudantes, 2 membros eleitos pelo pessoal não-docente e não investigador, e 10 Personalidades externas de reconhecido mérito, não pertencentes à instituição, com conhecimentos e experiência relevantes para esta.

Coadjuvação do Reitor

30. A Proposta elimina a menção vigente a propósito de coadjuvação por Pró-Reitores, “estes para o desenvolvimento de projetos específicos”. 

31. É certo que tal disposição nunca correspondeu à prática adotada pelos sucessivos Reitores. 

32. Mas, sem alguma diferenciação, haverá apenas Vice-Reitores de primeira e Vice-Reitores de segunda, ficando apenas vedado aos Pró-Reitores, nos termos dos Estatutos, a possibilidade de lhes ser delegada competência para a presidência do Conselho Geral dos Serviços de Ação Social.

33. Propõe-se a limitação do número máximo de coadjuvantes do Reitor. 

34. Este número foi aumentando em diversas universidades públicas portuguesas, em especial após a entrada em vigor do RJIES, tendo alcançado ou mesmo superado a dezena, em diversas instituições incluindo a Universidade de Aveiro. 

35. Observando o funcionamento e organização das Universidades, não se encontra justificação para tal dimensão, sobretudo com o enquadramento de permanência contido na Proposta.

36. É possível identificar em alguma literatura sobre organização e gestão universitária, e na própria experiência da UA, a sobreposição de atuação, designadamente de Pró-Reitores, em áreas que são da efetiva competência da Administração, ao nível da Direção de Serviços. 

37. Tal sobreposição acarreta prejuízos graves para a transparência, responsabilidade, e eficiência institucional.

38. Adicionalmente, nota-se que, quanto à coadjuvação dos Diretores das unidades de ensino e investigação, a Proposta contém limites mínimos e máximos.

39. Tal facto é interpretado como a conveniência de delimitação do número de coadjuvantes, atenta a dimensão da respetiva unidade, ou no caso dos coadjuvantes do Reitor, da dimensão institucional.

40. Os aspetos acima enunciados justificam a imposição de um limite máximo para o número de coadjuvantes do Reitor.

Conselho Científico

41. Chama-se a atenção para o possível conflito entre o disposto no número 3, alínea a), “(…) são automaticamente considerados membros os coordenadores dessas unidades” e o disposto no número 7, “A duração do mandato (…) é de três anos, não podendo ser exercidos mais do que dois mandatos consecutivos”.

42. Não é patente o aumento da representatividade das unidades orgânicas neste órgão, conforme enunciado no preâmbulo.

Conselho Pedagógico

43. Não é patente o aumento da representatividade das unidades orgânicas neste órgão, conforme enunciado no preâmbulo.

Da eliminação do Conselho para a Cooperação

44. A Proposta elimina o Conselho para a Cooperação, órgão consultivo consagrado originalmente no artigo 32.º dos Estatutos de 2009, e no artigo 31.º dos Estatutos de 2012.

45. Este órgão, consultivo, mas não facultativo, nunca foi criado. 

46. Assim, esta disposição estatutária não foi respeitada pelos sucessivos Reitores, desde 2019, a quem competia e compete a concretização do modelo estatutário de organização e gestão. 

47. Primeiro, foi alterada a sua natureza e composição, em 2012, sendo agora proposta a sua extinção, sem mais.

48. Não existe, pois, qualquer experiência institucional relativa às mais ou menos valias de tal órgão, ou até, no limite, à a sua inutilidade, desconhecendo-se igualmente qualquer reflexão publica ou publicada sobre esta matéria.

49. Realça-se que, após a alteração introduzida em 2012 quanto à sua composição, o Reitor goza de total liberdade para a escolha dos membros deste órgão.

50. Trata-se, deste modo, do único órgão, com natureza consultiva, com possibilidade de congregar experiências e valias externas à UA, caso fosse essa a opção do Reitor.

51. Tais experiências seriam especialmente relevantes para uma instituição que sempre se proclamou como aberta à sociedade.

52. No passado, ainda antes do RJIES e da subsequente alteração estatutária, a Universidade de Aveiro experimentou o que se poderia considerar uma estrutura embrionária deste Conselho, à data sob a designação de Conselho Estratégico.

53. Nota-se que o Instituto para a Cooperação contido na Proposta é um órgão de natureza diferente, vocacionado para coordenação interna, pelo que não existira qualquer sobreposição entre ambos.

54. Com a eventual eliminação do Conselho para a Cooperação sobrará uma nítida lacuna quanto à participação de membros externos à Universidade na sua estrutura de governo. 

Organização das Unidades Orgânicas de Ensino e Investigação

55. Considera-se desnecessária a inclusão da especificação “com uma vertente estratégica” referente ao programa do Diretor da Unidade. 

56. O referido programa deve abranger todo o mandato do Diretor, ou seja, quatro anos, o que implica, necessariamente, uma abordagem de nível estratégico de médio prazo para a unidade a que se candidata. 

57. Sendo o programa dos candidatos a Diretor, com as suas virtudes e lacunas, um dos elementos a avaliar durante o processo eleitoral correspondente. 

58. Em matéria relacionada, o artigo 39.º da Proposta dota o Conselho de Unidade com competência para “aprovar o documento de estratégia da Unidade de acordo com os parâmetros estabelecidos no plano estratégico da Universidade e em conformidade com o programa de ação apresentado pelo Diretor, aquando da respetiva candidatura”.

59. Pressupõe-se que o documento de estratégia da unidade seja diverso do programa de candidatura e que, embora tal não esteja especificado na Proposta, seja também submetido pelo Diretor.

60. Não é clara qual a articulação entre o programa de candidatura e o documento de estratégia, sendo que este último, necessariamente, será submetido tempo posterior ao primeiro, pelo que terá um tempo de vigência inferior dentro do mandato do Diretor. 

61. Não é claro, ainda que não tal seja necessariamente matéria estatutária, qual o horizontal temporal do documento de estratégia.

62. Não é claro o alcance da disposição referentes aos parâmetros estabelecidos no plano estratégico da Universidade para este efeito, concebido para um nível de organização superior ao destas unidades e, pelo menos no estado atual dos planos, sem parametrização óbvia.

63. Os prazos de vigência do programa estratégico da Universidade e dos diferentes programas estratégicos da unidade raramente estarão temporalmente alinhados, não se obtendo um eventual efeito, provavelmente não pretendido, de desenvolvimento de planos em cascata, do nível institucional para o nível das unidades.

64. Será até possível aprovar planos de estratégica de unidade em final da vigência do plano da universidade, potenciando graus de desalinhamento significativos.

65. Nota-se que as unidades orgânicas de ensino e investigação “gozam de autonomia de gestão mitigada”, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 35.º dos Estatutos, podendo a menção “vertente estratégica” agora proposta dar azo a interpretações diversas e autonómicas da competência estratégica destas unidades, designadamente em matéria dos recursos de que dispõe, incluindo os recursos humanos que lhe são afetos pela Universidade.

66. A possibilidade de interpretações diversas prejudica a capacidade de operacionalização da menção agora proposta, pelo que o seu potencial efeito será deveras incerto.

Dos Institutos

67. Propõe-se a criação de três Institutos: de Ensino e Aprendizagem, para a Investigação, e para a Cooperação.

68. Todos estes Institutos têm como objeto de atuação a coordenação integrada das atividades da UA em cada uma das respetivas áreas de intervenção, correspondentes, na essência, às três missões da universidade.

69. Talvez se afigure mais adequado, embora sendo uma questão de somenos, designar apenas como “coordenação”, em lugar de “coordenação integrada”.

70. Parece-se assim recuperar-se os antigos Institutos, como estruturas de nível intermédio entre as unidades básicas e ou transversais e nível de atuação do todo institucional.

71. O aumento do número de níveis de atuação tem o risco acrescido de potenciar zonas cinzentas onde existe potencial conflito ou indefinição das competências que residem nos diversos níveis.

72. Desta forma, considera-se desejável especificar as competências detidas por estes institutos, designadamente face às competências detidas por unidades, algumas das quais dotadas, pela Proposta, de planos estratégicos.

73. A forma proposta para cada Instituto apresenta similitudes, mas também diferenças.

74. No Instituto de Ensino e Aprendizagem não é referido o domínio da internacionalização, ao invés do que é proposto para os restantes Institutos, o que se estranha, desde logo tendo em consideração as prioridades da União Europeia nesta matéria, com especial incidência na mobilidade de alunos de primeiro e segundo ciclos, e das tendências à escala global neste campo.

75. Ainda neste Instituto, e uma vez mais ao invés do que é proposto para os restantes, não é feita menção às “novas perspetivas de intervenção, incremento de visibilidade e captação de novas oportunidades de projeção nacional e internacional da Universidade”, não se descortinando razão para o efeito, designadamente num contexto em que a Universidade efetua parcerias nacionais para estes níveis de ensino, integra redes internacionais, e é parceira no projeto de desenvolvimento de uma Universidade Europeia.

76. Um outro nível de diferenciação nas propostas referentes aos três Institutos diz respeito à sua organização. 

77. Para o Instituto de Ensino de Aprendizagem preconiza-se um conselho presidido pelo Reitor. 

78. Para o Instituto para o Ensino e Aprendizagem preconiza-se um Conselho, presidido pelo Reitor, mas que integra todos os diretores e coordenadores das unidades básicas e transversais de investigação. 

79. Aqui, deverá ser excecionado o próprio Instituto, ele próprio configurado como unidade transversal de investigação. 

80. Para o Instituto para a Cooperação preconiza-se um Conselho presidido pelo Reitor integrando necessariamente elementos internos e elementos cooptados. 

81. Caso seja essa a intenção, sugere-se precisar aqui “elementos externos cooptados”. 

82. Sendo o objeto deste instituo a coordenação integrada de atividades, não me parece que mais-valia dos externos.

83. Toda a restante organização dos Institutos é remetida para o foro regulamentar.

84. Esta diversidade e escasso aprofundamento sugere um grau de maturação diferente nos três casos e, porventura insuficiente.

Nota Final

85. A Proposta mantém as vinte unidades orgânicas de ensino e de investigação.

86. O modelo de organização destas unidades contido na Proposta, aumenta o número de órgãos que estas possuem.

87. As disposições relativas aos processos eleitorais para estes órgãos reconhecem, de forma explícita, a necessidade de métodos excecionais para unidades de menor dimensão, em particular em relação a alguns dos corpos representados.

88. Este facto é ilustrativo não só da diversidade das unidades quanto à sua dimensão, o que por si não constitui um problema, mas aos reflexos que tal acarreta em termos da própria organização interna e, mais importante ainda, de uma diferenciação quanto aos processos de representação.

89. Consultado o portal de indicadores da UA, é possível avaliar a dimensão deste problema, analisando, por exemplo, o número de docentes em “dedicação exclusiva” e “tempo integral”.

90. Esta seleção não corresponde a nenhum dos universos eleitorais, mas ilustra cabalmente a dimensão do problema.

91. Os resultados da consulta acima referida, tendo como base o ano de 2023, revelam sete unidades, num total de vinte, com vinte ou menos docentes da tipologia indicada: Departamentos de Ciências Médicas (20), Ambiente e Ordenamento (18), Ciências Sociais, Políticas e do Território (18), Engenharia Civil (16), Geociências (15), Engenharia de Materiais e Cerâmica (14), e Escola Superior de Design, Gestão e Tecnologias da Produção Aveiro-Norte (14).

92. A merecer reflexão no seio desta revisão estatutária, designadamente quanto ao número de unidades em que poderão não ser aplicáveis os métodos eleitorais preferenciais, e mais além dela.

domingo, 21 de julho de 2024

De chapéus, suspensórios e modas

Chapéus há muitos
Celso Pinto de Carvalho
CC BY-SA 3.0
, via Wikimedia Commons











O Governo quer carregar no acelerador da economia. O Governo quer mais empresas inovadoras. O Governo quer alterar o Estatuto de Carreira de Investigação Científica e do Estatuto do Docente para permitir aos investigadores e docentes em exclusividade serem membros dos órgãos sociais ou acionistas de startups que resultem dos seus projetos de investigação. Está escrito no programa Acelerar a Economia.

Antes de abordar as questões que considero fundamentais, importa aclarar o conceito de exclusividade a que esta proposta se refere. De um modo simplificado, os docentes e investigadores em instituições públicas de ensino superior podes estar enquadrados em dois regimes base, dedicação exclusiva e tempo integral. O que os distingue não é o número de horas contratuais, iguais em ambos os casos, mas a renúncia, no caso da dedicação exclusiva, ao exercício de qualquer função ou atividade remunerada, pública ou privada. E tal renúncia é acompanhada por uma compensação, que é materialmente significativa: um salário superior em 50% a um docente ou investigador em categoria equivalente mas em regime de tempo integral, ou seja que pode auferir rendimentos de outro tipo de atividades.

Examinando a exclusividade mais de perto, verifica-se que a renúncia é, afinal, parcial, e não absoluta. Diria mesmo generosa, uma vez que permite vários tipos de remunerações adicionais. É o caso da realização de conferências, palestras, cursos breves e outras. Mas também da participação em avaliações e em júris em outras instituições, prestação de serviço docente em instituição de ensino superior públicas (com algumas limitações), ou até no âmbito de projetos da própria instituição. Ainda assim, podemos considerar que, na maioria dos casos, se trata de atividades esporádicas, irregulares no tempo, e maioritariamente acessórias.

A proposta do Governo é passar incluir na lista de exceções permitidas a participação em órgãos sociais ou como acionistas de startups que resultem dos seus projetos de investigação. Que são também projetos das suas instituições, acrescento. E, na sua maioria, financiados por dinheiros públicos, acrescento ainda.

Vamos então à proposta.

A documentação que consultei no portal do Governo não continha informação de suporte a esta medida. Nada sobre as áreas, número e papel das empresas com origem em instituições de ensino superior, nada sobre o eventual papel "dissuasor" do atual regime de dedicação exclusiva, nada sobre os resultados esperados, para além de uma alteração de "contexto". Não me parece que resulte de um estudo. Poderá resultar de uma crença. Ou, no pior dos casos, da pressão de uns quantos "empreendedores" avessos ao risco. 

A proposta desvirtua o conceito de exclusividade existente. Desde logo porque a dedicação a uma empresa de criação própria, não é um compromisso esporádico, mas antes uma relação de longo prazo. Depois, porque se trada de uma relação na esfera privada, e não na esfera pública. Assim, ficam as perguntas: Porque é necessário este estatuto de proteção individual, contranatura? Porque é que os docentes-empreendedores, criadores de empresas com elevado potencial acelerador da economia, não transitam para o regime de tempo integral, podendo assim auferir outros valores com origem nas suas empresas? Porque é que, em alternativa, as instituições e os docentes-empreendedores não alienam os resultados da investigação a empresas e investidores privados?

É aqui que entram os chapéus, vários. Do docente e do empresário. Do público e do privado. Do orientador de alunos e do patrão. Do recetor de fundos e do investidor. Chapéus diferentes para a mesma cabeça e para um mesmo fato, uma vez que é a mesma investigação que se encontra de um lado e do outro. Ou pelo menos é indistinta, criando zonas cinzentas que abrangem pessoas, tempo de pessoas, recursos materiais, acesso a recursos digitais, intangíveis. Dando margem à impressão, ou não só, de gastos públicos para ganhos privados. Difíceis de separar, difíceis de escrutinar. Sobretudo porque sei, por conhecimento profissional, quanto o conceito de “conflitos de interesse” parece alheio, diria mesmo alienígena, a muitos, que não a todos, académicos e investigadores. Isso só acontece aos outros.

Mas há outros adereços, para além dos chapéus, nesta moda dos nossos dias. Cintos, coletes, redes, air bags e até paraquedas. Podem conhecê-los por outros nomes. Cursos em empreendedorismo, para várias idades e até aos doutorandos. Omnipresentes. Valorizados. Considerados quase imprescindíveis. A fazer lembrar o exemplo da formação em sustentabilidade. Do berço à idade adulta. Apoios para estágios em empresas. Apoios para doutoramentos em empresa. Apoios para a contatação de doutorados. Apoios à incubação e à aceleração. Agora apoios à criação de empresas privadas por servidores públicos em regime de dedicação exclusiva. 

Sim, são medidas diferentes com objetivos diferentes e, na origem, com destinatários diferentes. Mas em determinados “ecossistemas” torna-se possível ir navegando, durante muito tempo, durante demasiado tempo, à bolina do sopro dos estímulos. À semelhança do que se dizia da agricultura em finais do século passado. À semelhança do que se pode dizer de parte da investigação nos nossos dias.

Esta proposta insere-se nesta lógica. Transitando entre o melhor de dois mundos. Promovendo o empreendedorismo sem risco. Sem o risco de escolher.

sexta-feira, 5 de julho de 2024

A nuvem no fundo do mar

 

Querem colocar uma nuvem no fundo do mar. Li num jornal em papel, à mesa de um café, num sábado que já passou. Jornal que chega agora à sexta, em vez de chegar ao sábado da praxe. Como se tivesse pressa, num sinal de tempos apressados. 
Imagino a nuvem pousada no leito do mar. Trocando o sol e o vento, pelo escuro e pelas correntes.  Amarrada, não se desse o caso de querer flutuar em busca da liberdade perdida. Deixou de ser nuvem passageira que com o vento se vai. Deixou de ser nuvem de trovoada que passa a chuva. Deixou de poder ser observada a mudar de forma, pelo homem que observava as nuvens numa praia do Mediterrâneo, tentando adivinhar o futuro. Imagens. Músicas. Livros. Misturados num redemoinho, de ar, ou de água.
Continuo a ler o jornal. Parece que a nuvem, afinal, é nome próprio. Nome de cabos no fundo do mar, desenrolados ao longo de muitas léguas submarinas. Não chegarão às dez mil. Estendidas numa linha única, não se assemelharão a tentáculos de polvo gigante. Uma linha que amarra continentes, os quais, como se sabe, continuam à deriva, quais jangadas com náufragos. Nuvem. Nome em português para amarrações nas profundezas do mar português. Mares com fronteiras. 
Coisas privadas, de uma empresa dita tecnológica. Daquelas cujo nome agora se conjuga em forma verbal. Daquelas criadas em vésperas da mudança de século, e de milénio. Tempos apropriados para anunciar fins de uns tempos e começo de outros. Visões de futuros. Alguns são agora passados. Outros, estão por aí, presentes. Uns quantos nunca deixaram de ser visões. E outros estão ainda para vir. 
Uma outra nuvem paira por aí. Também se chama nuvem, mas em inglês. Misteriosa e invisível para o comum dos mortais. Entre o material e o imaterial. Objeto quase, escreveria o escritor. Repositório infinito. Para tudo. Do dia-a-dia, do trabalho, do lazer, dos auto-retratos. A culpa é das malditas fotografias, julgo ouvir do croata, que já foi soldado. Aqui não são campos de batalha, talvez, mas pastos de bits e bytes, a não confundir com a mordidela inglesa, nem com trocas dos bês pelos vês. Quantidades que se medem em potências de dez. Kilo, mega, tera. Depois, peta, exa, zetta, e por aí fora. Sem fim.
Ligações sem fios que precisam de ligações com fios. Lampejos de sustentabilidade, devoradores de energia. Imaterialidades feitas de matéria, do silício às terras raras, exploradas pelo mundo, explorando o mundo, explorando as pessoas. Não voltarão os homens a ser postos no lugar das coisas, diz-me o escritor. 
A nuvem do início do texto liga-se à cloud. A cloud liga-se às nossas casas. Ao computador onde este texto foi escrito. Aos computadores onde este texto está a ser lido. Passando por outras máquinas, por repartidores, multiplicadores, servidores, armazéns. Quintas onde se reúnem as alfaias desta nova agricultura. Armazenando, catalogando, classificando. Mas também analisando e aprendendo, a um passo da criação. Passos antes da capacidade de rebelião. Da revolta das máquinas.
IA. Inteligência artificial. IA. Também inseminação artificial e histórias com touros, recordava o cantautor, de sabedoria septuagenária, antes de abordar as vantagens da mesma (da primeira, note-se!) e a sua inspiração panóptica para o futuro. Há quintas e quintas. Havia uma outra em que eram sempre os porcos que formulavam as moções. Os restantes animais percebiam como é que se votava, mas nunca conseguiam formular as suas próprias propostas. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.
Fábulas e parábolas. Utopias e Distopias.
IA. As iniciais de um escritor. As leis da robótica, bem antes da condução autónoma. O Multivac, também ele desenrolado por todo o planeta e recebendo continuamente informação, angustiado com o peso de conhecer todos os problemas do mundo, e procurando que o desliguem, libertando-o desse fardo. O AC Cósmico, que durante um tempo já sem tempo, e já sem homens, continuou à procura da reposta à última pergunta. Faça-se luz, ordenou o AC, e a luz foi feita. 
Volto à nuvem e aos cabos. Desta vez na televisão. Fala o almirante. Parece que há navios espiões. Russos. Mapeando os cabos. Equipados com submarinos que os podem cortar. Se fosse nuvens no céu, poderiam ser dirigíveis. Qual guerra fria num mundo em aquecimento. Na mesa de cabeceira, não a gente de Smiley, ou a caça ao outubro vermelho. Mas não anda longe. Twilight Struggle - A Guerra Fria, 1945-1989. Um livro de regras que não tem regras para estes tempos.
Escuto. As músicas atropelam-se. Depois vão-se tornando nítidas, emergindo do mar profundo. Ouço as palavras. Terminou o tempo, a canção chegou ao fim, julguei que teria algo mais para dizer. 
Carrego no botão. Separo-me da rede.

domingo, 14 de abril de 2024

Governo alternativo

Thomas Hawk, Flickr








O Governo disse ao que vinha e o ministro da presidência reafirmou-o em conferência de imprensa. Um governo humilde e de diálogo. O ministro que é primeiro apresentou o programa de governo e anunciou uma redução de 1 500 milhões de euros em IRS. Em relação ao valor de 2023. Um facto indesmentível. Como se defendeu o governo quando confrontado com a responsabilidade material da redução, ou da maior parte dela. 

Tão indesmentível como a tentativa deliberada de colar toda esta redução à atuação do novo governo. Tão inequívoca como o facto de o orçamento em vigor, oriundo do anterior governo, ser responsável por cerca de 90% dessa redução. E isto apesar da tentativa de clarificação, em debate parlamentar, não de um mas de dois deputados da Iniciativa Liberal. Ou dos esclarecimentos solicitados por um jornal como o Expresso que, após noticiar a duplicação da redução de IRS, sentiu a necessidade de publicar uma nota tão forte como rara, sob o título "É mais do que um embuste, É enganar os portugueses". 

Voragem dos tempos. Em que um programa de governo é apresentado e debatido quase de imediato. Em que os debates são comentados e discutidos ao vivo, tentando descortinar intenções de segunda e terceira ordem. Em que falta tempo para análise e reflexão. Para fazer contas e cruzar dados. Em que a viva voz é sobrevalorizada como construtora de realidades. Tempos de vertigem.

Mas podia não ser assim.

Imaginemos um governo alternativo. Com um primeiro ministro que anunciava que, para além da redução de IRS de 1 300 milhões proposta pelo anterior governo, aprovada pela Assembleia da República, e com a qual concordava, estaria em condições de ir ainda mais além, já, no imediato. Atingindo os 1 500 milhões. Mesmo sem necessidade de um orçamento retificativo, que pode ou não vir a existir. E sem prejuízo de incluir reduções adicionais no orçamento para 2025.

Humildade e diálogo. Como prática. Se for essa a intenção. 

Por mim, desconfio de quem apregoa virtudes próprias.