quinta-feira, 1 de agosto de 2019

CDS não faz os TPC e chumba no acesso















A caminho das eleições.
Um percurso longo, lento e ruidoso.
Poucas vezes profundo, aprofundado ou esclarecedor.
Programas que não são bem para serem lidos, discutidos ou executados.
Programas que ficarão reduzidos a alguns chavões.
Chavões que se destinam à repetição.
Sons que mordem.

Ainda assim, vale a pena olhar para aquilo que melhor se conhece. E confirmar, corrigir, contestar ou desmentir.  Para que não se fique pela superfície. Porque não vale tudo.

Olhemos para uma proposta que se intitula CDS quer dar oportunidades a quem ficou de fora do Numerus Clausus. Um documento curto, cheio de incorreções, omissões e afirmações que facilmente induzem leituras distorcidas.

Leiam comigo, ponto por ponto (a itálico o texto da proposta do CDS).

O que acontece a um aluno que não tenha vaga no ensino superior público?
Tem três opções: uma universidade privada, uma universidade no estrangeiro ou desiste de entrar numa universidade.

Suponhamos que, para o CDS e neste contexto, “universidade” abrange todas as instituições do ensino superior universitário e politécnico, evitando aqui uma discussão sobre a natureza do sistema de ensino superior.

Suponhamos ainda que é claro que se trata aqui, só e apenas, das vagas gerais do Concurso Nacional de Acesso.

Encontro pelo menos uma alternativa à desistência: prosseguir a formação através de outros cursos ou de disciplinas isoladas, voltando a tentar o ingresso no ano letivo subsequente.

Mas essas vagas correspondem à capacidade máxima de cada universidade para receber alunos?
Não. Tanto assim é que, depois, as universidades públicas recebem alunos estrangeiros que pagam os seus estudos a preços de mercado.

A primeira parte, "Não", está certa. As Universidades recebem alunos, em número muito significativo, por vias distintas do chamado Contingente Geral do Concurso Nacional (as “vagas” a que o CDS se refere).

São contingentes especiais do Concurso Nacional destinados a candidatos: oriundos da RA dos Açores e da RA da Madeira; emigrantes portugueses e familiares que com eles residam;  militares em regime de contrato; com Deficiência Física ou Sensorial.

São concursos especiais para: maiores de 23 anos; titulares de diploma de especialização tecnológicas locais; titulares de diploma de técnico superior profissional; para titulares de outros cursos superiores.

São regimes especiais abrangendo: missão diplomática portuguesa no estrangeiro; portugueses bolseiros no estrangeiro e funcionários públicos em missão oficial no estrangeiro; oficiais das forças armadas portuguesas; bolseiros nacionais dos países africanos de expressão portuguesa; missão diplomática acreditada em Portugal; praticantes desportivos de alto rendimento; naturais e filhos de naturais de Timor-Leste.

E, sim, também um concurso especial de acesso para estudantes internacionais.

A seguir já está só assim-assim. Não é "depois" que as universidades públicas recebem alunos estrangeiros. Na maior parte dos casos há duas ou três fase de concurso, ao longo do ano, para admissão de estudantes internacionais.

Estranha-se aliás, face ao número de diferentes regimes, esta fixação no estrangeiro. A não ser que … sim … aí entra o argumento seguinte: “que pagam os seus estudos a preço de mercado”.

Primeiro, também para estes há vagas, seriação e alunos que não entram. Não se trata de uma entrada ilimitada de estrangeiros que podem pagar.

Segundo, as universidades recebem muito alunos estrangeiros da União Europeia, que são tratados como estudantes nacionais.

Então a que é que correspondem essas vagas?
Essas vagas correspondem ao numerus clausus: o Estado define, anualmente, o número máximo de vagas que cada instituição pode abrir no concurso de acesso ao ensino superior, tendo em conta o montante de orçamento de que dispõe para o efeito. Determina também a propina máxima a ser cobrada por essas vagas.

“Estado” é um bocadinho vago. Vamos ser mais precisos. O Governo emite, anualmente, um despacho orientador para a fixação das vagas das licenciaturas e mestrados integrados. Este despacho impõe limites globais por instituição e critérios aplicáveis a todos ou a alguns cursos.

Há ainda que ter em consideração que a Agência para a Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) define valores máximos de vagas para cada curso, no âmbito da acreditação, tendo em conta, designadamente, as instalações e os docentes existentes, visando garantir a qualidade do ensino.

A relação com o orçamento é abordada no ponto seguinte.

Já a propina máxima é automaticamente calculada para cada ano, com base num valor pré-histórico e no Índice de Preços ao Consumidor, de acordo com uma Lei da Assembleia da República. Recentemente, e na prática de remeter para o Orçamento de Estado muita coisa que deveria ser tratada noutras sedes, este valor máximo tem sido alterado por este diploma, também ele competência da Assembleia da República.

Compete às instituições de ensino superior fixar o valor da propina e nem todas adotam o valor máximo.

Então as vagas estão relacionadas com a capacidade de o Estado pagar?
Precisamente. O Estado só manda abrir as vagas que está em condições de financiar. É essencialmente por isso que há vagas limitadas. Se fosse por questões de capacidade, as universidades não aceitariam depois os alunos estrangeiros de fora da UE.

Err ... Errado. Se fixar a atenção no que o Estado "manda" abrir ou não, para que a premissa fosse verdade era preciso que o financiamento do ensino superior, o financiamento das instituições de ensino superior, estivesse indexado ao número de alunos. Até, em parte deveria ser assim, nos termos da lei da Assembleia da República que se encontra em vigor, mas que é desrespeitada pelos sucessivos governos, há pelo menos uma década, perante a complacência generalizada.

Aliás, o sistema de numerus clausus foi criado para controlar o excesso de afluência a determinados cursos (medicina, por exemplo) e não por questões financeiras. Bem, pelo menos o CDS não foi pela lógica da "empregabilidade" e do ensino superior como mero instrumento ao serviço da economia.

As questões de capacidade são, como referido, avaliadas pela A3ES.

Se os alunos que ficaram classificados nos lugares imediatamente a seguir às vagas quiserem entrar, pagando do seu dinheiro, podem?
Não podem, porque o Estado não permite.

Sim, o "Estado" entende que o critério de acesso é o mérito, traduzido numa nota de candidatura, e não o poder do bolso.

Mas alunos estrangeiros podem?
Podem: alunos vindos de fora da UE podem, alunos que se candidataram ao nosso sistema de acesso é que não.

Aqui já é mais difícil de qualificar. Não me parece incompetência. Nem má-fé. Algo bem pior.

Vou repetir: os alunos vindos de fora da EU entram por um sistema, independente, mas análogo ao dos nacionais: um concurso, com vagas, em que só entram os melhores classificados até ao limite das vagas. O dinheiro, só por si, não permite entrar.

Qual é o sentido desta regra?
Nenhum. Não faz qualquer sentido que uma família portuguesa, cujo filho não se classificou para a entrada no curso ou na escola da sua preferência, dado o número clausus, não possa escolher aceder a essa vaga, pagando o seu custo real, tal como pode escolher uma universidade privada ou uma universidade estrangeira.

É difícil ser mais eloquente. A questão nem sequer é posta para qualquer um poder escolher o curso que quer, onde quer. É apenas o poder pagar. Quanto à gestão de recursos ou outras missões do Estado remete-se para uma qualquer reforma ou buraco.

Para quem quiser dissertar sobre outras questões: "família", "família portuguesa", "filho".

Como funciona o sistema proposto pelo CDS?
Se uma instituição de ensino superior público tiver capacidade para receber mais alunos para além do número clausus, essas vagas devem ser disponibilizadas também a alunos portugueses, seguindo as regras do Concurso Nacional de Acesso (CNA). Ou seja, os alunos que ficaram de fora podem, se quiserem entrar pela sua ordem de classificação, pagando os preços de mercado.

E aqui, afinal, pode ficar quase tudo na mesma!

Porque é "se" houver capacidade para além do numerus clausus. Resta saber se os restantes regimes que referi são também afetados ou se a lógica, não afirmada mas implícita é, primeiro as vagas são ocupadas por alunos portugueses (não sei aqui se está a falar apenas de alunos com cidadania portuguesa) e, as sobrantes, por estrangeiros exteriores à União Europeia.

Porque afinal se mantém a seriação do CNA.

E portanto não é qualquer um poder escolher!

Mas estes alunos terão de pagar?
Estes são os que alunos ficaram fora do numerus clausus. E, portanto, têm apenas três hipóteses atualmente ou pagam a uma universidade privada, ou vão para o estrangeiro, ou esperam mais um ano. O que estamos a propor é a dar-lhes outra opção: a de entrar numa universidade pública.

Ora se à entrada a terceira opção era desistir do ensino superior (merece mais 5 pontos pelo efeito dramático), agora, quase à saída, já aparece a via de esperar mais um ano.

Não esquecer que esta é uma opção condicionada!

Haverá ajudas para esse efeito?
Propomos um sistema de ação social reforçado. Propomos também que seja reforçado o sistema de empréstimos de garantia mútua para que as famílias possam ter forma de financiar a sua livre escolha.

Isto parece mais um Nim, menos taxativo que os pontos anteriores.

Ou é acessível para quem tem bolsa, ou para quem tem capacidade de contrair um novo empréstimo ou pago através da ação social, mas aqui a um valor substancialmente superior do que o dos restantes alunos! Simples, não?

Para além de que alunos que, no final, entraram através do mesmo concurso, pagarão propinas significativamente diferentes!

Isto não prejudica as Universidades privadas?
Isto aumenta a concorrência entre todas as universidades, e isso é bom para todos. Quanto maior a concorrência, melhor será o ensino.

Porque aqui poderíamos ter outra conversa longa, sobre o mercado do ensino ou o ensino no mercado, e sobre como o ensino superior está longe de constituir um mercado funcional nos seus mais variados aspetos, as falhas de mercado e etecetera e tal.

Qual a vantagem para a universidade pública?
As instituições, seguindo os critérios da CNA, poderão ter mais alunos portugueses ou de outras origens. Mitigar a limitação atual permitir-lhes-á tomar decisões relevantes e autónomas numa estratégia de longo prazo e explorar uma linha de receitas próprias para potenciar o seu financiamento?

Bom, estamos quase na quadratura do círculo.

Como se dizia na proposta, mais acima “essas vagas devem ser disponibilizadas também a alunos portugueses”.

A não ser que haja um excesso de capacidade gritante (e pode haver em algumas áreas e em algumas instituições, mas não será nem nas instituições mais procuradas nem nas áreas mais pretendidas), não haverá grande acréscimo de alunos nas instituições, antes uma eventual substituição de alunos estrangeiros por nacionais, resultando, portanto, num saldo nulo.

Estamos a prejudicar alunos?
Não, ninguém ficar prejudicado. Quem antes entrava, continuava a entrar. Simplesmente estamos a aumentar a escolha dos alunos que ficaram “de fora”, e que poderão optar, seguindo os critérios do CNA, por uma vaga paga no ensino superior público, por uma vaga paga no ensino superior privado ou por uma vaga numa universidade fora de Portugal.

Aqui fica uma alternativa, menos retorcida, para conduzir ao mesmo efeito: aumenta-se o numero clausus (que o CDS não propôs extinguir) com base na eventual capacidade excedentária e na redução das vagas para estudantes estrangeiros externos à União Europeia e, em simultâneo, implementa-se um verdadeiro sistema de financiamento do Ensino Superior.

É capaz de ser suficiente para um programa a quatro anos.

Simples, não?

Versão curta publicada no jornal Público, Cartas ao Diretor, de 3 de agosto.
https://www.publico.pt/2019/08/03/opiniao/opiniao/cartas-director-1882181