sábado, 30 de novembro de 2019

A Voz



Não gosto de comentar excertos. É demasiado fácil perder o contexto, tomar a parte pelo todo, fazer interpretações erróneas, ler o que queremos ler para mais facilmente concordar, ou discordar, consoante o autor e consoante o lado. Mas abro exceções. Por exemplo, quando é o próprio, ou a entidade em que este se insere, que publicita o excerto,  atribuindo-lhe assim particular significado, pretendendo assim veicular determinada mensagem.

É o caso de uma afirmação da nova Ministra do novo Ministério da Coesão Territorial, em sessão comemorativa do dia da cidade da Guarda, reproduzida a 27 de novembro no portal do Governo:

Foi também por isso que há agora uma área de governação para a Coesão Territorial, «para garantir que o Interior está próximo, que o Interior tem uma voz, que o Interior será ouvido».

Noto que a primeira parte não está entre aspas, pelo que a frase não terá sido proferida em toda esta extensão. Por isso, o preâmbulo, enquadramento ou ligação à citação só reforça o significado político que se pretende conferir. Significado e reforço bem reveladores, porque a área de governação, em vez de adquirir uma existência transversal, foi corporizada num Ministério:

Assim, estar próximo é não só estar na capital, mas ter um lugar sentado à mesa do Governo.
Assim, ter voz é ter Ministro, para persuadir os colegas despreocupados sobre o tema.
Assim, ser ouvido é ter Ministério, para ganhar interlocutores dentro da máquina.
Assim, talvez o Governo não seja, afinal tão XXL.

Preocupam-me os que ainda não têm Ministro! ... quero dizer ... Voz! Mas começo-me também a preocupar com os que têm Ministros a mais ... quero dizer ... que ouvem vozes, múltiplas vozes, venham elas do Interior, do Mar, ou estejam em Transição.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Reinos e Feudos












Há ocasiões em que quem tem poder imagina não ter limites. Sejam eles de natureza ética, política, legal, de coerência ou de dever. Imaginam-no porque é o que desejam. Uma atuação sem obstáculos, sem condicionantes, sem compromissos. Atuação sem outros. Porque os outros são sempre incómodos, na melhor das hipóteses, senão mesmo inimigos.

Vemos isto lá fora, como se costuma dizer, como cá dentro, ainda que dentro e fora faça cada vez menos sentido neste mundo interligado. Nos mais altos níveis do poder das nações, bem como a níveis intermédios e a níveis locais. Em grandes instituições ou a uma escala mais pequena. Vemos isto onde há poder, mas em particular onde há determinado tipo de poderosos, com o seu séquito de operários do poder.

Há quem se alie, por conveniência ou convicção; quem critique, apenas porque almeja esse mesmo poder que por agora lhe escapa; quem se cale por receio, desinteresse ou descrença. Mas há também quem conteste, por entender que há limites inultrapassáveis, que há público e que há serviço público.

Há quem faça lembrar, de viva voz, ou por escrita com força legal, que os Presidentes não são Reis.

Stated simply, the primary takeaway from the past 250 years of recorded American history is that Presidents are not kings (...) This means that they do not have subjects, bound by loyalty or blood, whose destiny they are entitled to control. Rather, in this land of liberty, it is indisputable that current and former employees of the White House work for the People of the United States, and that they take an oath to protect and defend the Constitution of the United States.

Ketanji Brown Jackson, United States District Judge, 25 de novembro de 2019.
O texto completo pode ser lido aqui.


Há quem dê o poder devido, de voz ativa, no exercícios das suas funções e com base no seu conhecimento, aos que muitos teimam em querer confinar ao papel de meros executores, sem possibilidade de questionar, sem possibilidade de defender o bem comum.

"I hope you will continue to challenge ill-founded arguments and muddled thinking and that you will never be afraid to speak the truth to those in power. I hope that you will support each other in those difficult moments where you have to deliver messages that are disagreeable to those who need to hear them. I hope that you will continue to be interested in the views of others, even where you disagree with them, and in understanding why others act and think in the way that they do. I hope that you will always provide the best advice and counsel you can to the politicians that our people have elected, and be proud of the essential role we play in the service of a great democracy.”

Sir Ivan Rogers, em mensagem dirigida ao pessoal, ao resignar do cargo de Embaixador Britânico na União Europeia, num texto que já passou por este blog.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

XXL















O Governo da nação conta com 70 membros. Rezam os registos que é o maior de sempre na história da nossa democracia. Proliferam os ministros. Mudam-se as designações de ministérios. Transplantam-se competências e missões, ainda que recentemente criadas, de uns para outros. Aumentam os secretários de estado, os gabinetes, as assessorias, as instalações, as deslocações. E, certamente, o mesmo sucederá com as consultorias de imagem, as agências de eventos, os pareceres jurídicos externos.

Mais importante, multiplicam-se zonas de sobreposição e de indefinição, tão nefastas umas quanto outras, áreas de saturação de luz e de sombras profundas, de cacafonia e de silêncios. Que farão emergir grupos de trabalho para articulação, instâncias de coordenação superior, momentos de arbitragem. Algo que será particularmente sentido na ação dos ministérios com caráter mais transversal do que vertical, em que quase tudo terá de ser negociado, não com a sociedade mas no seio do próprio governo.

Não haverá tamanhos ótimos, mas há excessos que são claramente identificáveis e problemas que se antecipam.

As causas destas coisas? Diversas e em diferentes proporções. A importância simbólica de uma pasta ministerial, a recompensa de fidelidades; a vontade de contar com um contributo especial de alguém a quem se reconhece mérito; os equilíbrios do partido, das regiões, do género, de alguns setores; a necessidades dos ditos independentes; a esperança de uma revelação; o por à prova para um futuro; o juntar ou dividir; o equilíbrio de poderes entre governantes; as saídas que podem estar mais ou menos anunciadas a médio prazo; os dossiers que se antecipam difíceis; a visão de uma estrutura; a influências daqueles em quem se confia; os compromissos; muitos compromissos; o tempo.

Um salto ao lado, do Governo da nação para as Universidades em França.

"Collecting data from 70 institutions, the higher education news agency AEF info found that the average university had 12 vice-presidents", leio no Times Higher Education, sob o sugestivo título Universidades Francesas acusadas de estarem inchadas no topo.

E, mais à frente, "The survey of universities’ senior management comes in the wake of work by Christine Musselin, a sociologist of universities and former dean of research at Sciences Po, who argues in her recent book that French institutions must radically reshape their management structures and shrink the number of vice-presidents."

Constatando-se também uma certa diversificação na designação de pelouros: Some university managements have swelled to include vice-presidents for simplification, “success”, “heritage” and, even, “the sea”.

Um salto mais. E entre nós?

Oito Universidades no início do século, há menos de duas décadas, portanto: Aveiro, Beira Interior, Coimbra, Évora, Minho, Nova de Lisboa, Porto e Trás-os-Montes e Alto Douro. Entre elas, um total de 57 Reitores, Vice-Reitores e Pró-Reitores, uma média de pouco mais de 7 por instituição.

Avançando no tempo para 2009-2011, nas primeiras reitorias pós-Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior. As mesmas instituições. O número de dirigentes no topo cresceu para 70, a média subiu para quase 9.

De regresso ao presente ano de dois mil e dezanove. Continuando a seguir aquelas instituições. Atingimos os 80 lugares e uma média de 10 elementos por reitoria. Se estendermos o olhar para abarcar o conjunto das instituições públicas universitárias a média sobe para 11, por efeito de sete instituições com 10 ou mais membros nas suas equipas reitorais.

Usando analogias que se ouvem por aí frequentemente, nos comentários, passou-se do partido do táxi ao que precisa de dois mono-volumes, ou de uma equipa de futebol de salão a uma de futebol de onze.

As causas não serão, certamente, muito diferentes das identificadas para os elencos dos Governos da nação, em doses adaptadas às histórias e contextos locais do que também são lutas pelo poder.

Os efeitos são, também eles, em tudo semelhantes, com a característica adicional, já apontada no caso francês, de uma mistura, no topo, entre governo e administração, entre definição de políticas com o que devia estar acometido, claramente, a outras estruturas e serviços. Voltando a Christine Musselin: "Across many universities, vice-presidents, themselves normally academics, had duplicated existing administrator roles, she told THE.". Uma questão de poder e de controlo direto, no que deveriam ser dois níveis organizacionais distintos. E também, em quase todos os casos, uma questão de confiança exígua, usando este termo tão caro a Adriano Moreira, entre dois mundos, o dos académicos e o dos administradores.

Um caso para estudo. Para reflexão. E para ação. Para o bem comum.

Algures entre o Small is beautiful e o Size matters.