sábado, 10 de dezembro de 2022

Fragmentos


Manhã de fim de semana. Dia cinzento. Sentado a uma mesa de café. Sobre a mesa, a chávena de café, o bloco aberto, o lápis com muito ainda por escrever, a borracha, os óculos para a distância certa. Rabiscando notas, ideias para outras escritas, linhas de tempo. Ao lado, a janela que separa dois mundos. De fora, poderá ler-se, em fundo branco recortado formando letras de vidro, que existe uma cerveja de sabor autêntico, desde 1927. De dentro é possível ler o mesmo, mas em sentido inverso, mundo ao contrário. 

Os clientes, poucos, entram, ficam pouco tempo, e saem de regresso há vida, depois do intervalo no mundo de dentro. Terão o hábito de vir aqui. Trocam palavras com os donos, ele sentado, atrás da caixa registadora, ela ao balcão, aviando os pedidos. Um café ou o pequeno almoço. Olhe, e um cartão daqueles, e depois mais um. Cartões para raspar a sorte, que não parece abundar. O homem terá ganho dez euros, há dias. Aquela, se tinha entrado antes, tinha ficado com o cartão de cinco euros. Contas de somar. Das de subtrair não se fala. A televisão, sempre ligada, ora alimenta conversas de ocasião como serve de banda sonora. Programas sobre vida selvagem, aquela dos outros animais.

No mundo de fora há duas pequenas mesas quadradas, junto às janelas, com cadeiras desalinhadas de plástico verde, entrançado. Uma extensão do mundo de dentro, paredes meias com o passeio, as pessoas andando, os carros parados à base de moedas, a rua que é, sobretudo, de passagem.

O homem entra, pede um café, e senta-se consigo no mundo de fora. Pedro, chamemos-lhe assim, porque precisa de nome, terá mais de trinta anos e menos de quarenta, talvez. Cabelo escuro e barba farta, que há muito não vêm tesoura.  Usa uma gabardina, escura de cor, escura também da cor dos passeios e recantos onde deve ter dormido esta noite, onde deve dormir as noites. Pousado ao lado, o saco, onde transporta o cobertor. Na mão, de dedos enegrecidos e unhas longas, o cigarro aceso, fumado lentamente. Olhando o passeio, rosto pálido, olhos semicerrados para a vida. Ficou por ali algum tempo. Em transição, entre a noite que já foi e o dia que anda por aí. Levantou-se. Partiu. Discreto.

Chega depois Maria, chamemos-lhe assim, porque precisa de nome. Deverá andar pela mesma idade de Pedro. Magra, desalinhada entre o arranjo que parece querer mostrar e o desarranjo que se nota. Agitada, senta-se primeiro, lá fora, levanta-se e entra, depois. Um café? As moedas não chegam para tanto. Um copo de água, para ter direito a sentar-se um pouco no mundo de fora, que afinal parece ser o meu. Tosse. Agitada, percorre o telemóvel, murmura umas palavras. Tosse. Sorri para uma criança que passa, pela mão. Volta ao telemóvel. A tosse repete-se, torna-se insistente. Levantou-se. Partiu. Agitada.

No lugar onde estava Pedro, senta-se agora Sílvio, chamemos-lhe assim, porque precisa de nome. Cabelo quase rapado de lado, mais espesso em cima, penteado para trás, barba aparada. Jeans escuros e botas a brilhar de limpas. Camisola de gola alta e casaco aberto. Na mesa um café. Na mão um telemóvel, daqueles de dimensões generosas, com três, ou serão quatro, câmaras fotográficas na parte de trás, para capturar pedaços do seu mundo, e lançá-los nos fios que tecem as redes, ditas sociais. Os dedos deslizam à superfície. As imagens são sobretudo de botas e de sapatos, ampliadas, analisadas atentamente, reduzidas. Imagens com marca e preço, conjeturo. Longos minutos feitos de sapatos para andar. Umas quantas mensagens. Um telefonema. Levantou-se. Partiu. Calçado.

Arrumo os óculos e o lápis. Fecho o bloco, com fragmentos de escritas. Pago o café. Saio do mundo de dentro. Entro no mundo de fora.