terça-feira, 18 de dezembro de 2012

A Rede (II) - Ainda não foi desta que veio o peixe.

A Plataforma para o Crescimento Sustentável, iniciativa mediática protagonizada por Jorge Moreira da Silva, produziu um relatório para o dito crescimento,com uma pitada de "visão pós-troika", de que já está disponível o sumário executivo.

Sendo um sumário isso mesmo, um sumário, privilegia, na área do ensino superior e da ciência, o aumento da eficácia e da eficiência: "O que é verdadeiramente importante são os resultados que se alcançam com esse financiamento [mais do que o eventual aumento do financiamento público]".

Para este fim preconiza a proclamada reorganização e racionalização da rede de ensino superior, num só parágrafo e de uma assentada, "através da fusão, extinção e associação de instituições, com recurso à avaliação das instituições e a um novo modelo de financiamento, que promova a definição de missões distintas para as instituições de ensino superior, num quadro de competição e cooperação dentro do sistema e de criação de massa crítica indispensável à internacionalização do ensino superior." Ufa!

Fusão, extinção e associação de instituições são instrumentos conhecidos e até consagrados na lei. Fusão vem aí uma; cooperação existe alguma; associações formais menos a não ser para fins parcelares e específicos (graus, projetos, unidades de investigação); extinções nem por isso, salvo o caso de algumas privadas. Mas ficam as perguntas habituais: Em nome de quê? Onde? Entre universidades e politécnicos? Entre públicas e privadas? Só nas grandes cidades? Politécnicos regionais?

Com recurso a avaliações institucionais - sim, mas é preciso clarificar antes as missões de cada instituição, de per si e no sistema, e o que de facto se pretende alcançar.

Um novo modelo de financiamento que promova missões distintas - baseado em contratos institucionais em que diferentes fins são acolhidos e vistos por métricas diferentes? Por fórmula? Misto?

Num quadro de competição e de cooperação - se as missões diferentes podem estimular uma complementaridade e, por esta via, cooperação, já a redução de instituições, em conjunto com esta diferenciação, reduzirá a competição.

Massa crítica indispensável à internacionalização - mera junção de dois chavões ou mais do que isso? Que internacionalização se preconiza: "exportar" o ensino superior? Acolher mais alunos estrangeiros? Ter maior presença em redes internacionais? É o que é massa crítica: uma mega-universidade? Ou "small" ainda pode ser "beautiful", como no famoso mote muito caro ao movimento ambiental.

E bom, claro, falta uma referência à ligação da rede ao território e ao desenvolvimento sustentável, o que, num trabalho desta natureza até é de estranhar.

Repito, isto é um parágrafo do sumário executivo. Mas temo que o relatório propriamente dito não vá muito além destas generalidades, que permitem acolher o tudo e o nada.

Ainda não foi desta que veio o peixe.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Viagem

Nuvens. Chuva. Estrada deserta.
O mundo que existe para lá do vidro, para lá das gotas, é um mundo desfocado, de formas indistintas, de cores atenuadas e tons sombrios. Mundo que se vê, mas que se não sente. Não se sente o toque do vento que abana as árvores. Não se sente o frio da água que escorre pelas encostas. Não se ouve o embate da chuva com as folhas, com as pedras, com a terra.
Nuvens. Chuva. Estrada.
Para o mundo somos nós que estamos desfocados, para lá do vidro, para lá das gotas. Num casulo morno, em que parados deslizamos. Envoltos em sons que se misturam: o crepitar da chuva, o fremir longínquo do motor, as rodas pisando a água, o rádio de onde chegam vozes e sons de outros tempos, deste tempo. Toca chuva vermelha, com cores que esta não tem. Realidade irreal.
Estrada. Carros.
Pessoas que não se vêem. Cruzam-se, ultrapassam, são ultrapassadas. Pensamentos e vidas; no mesmo mundo mas em muitos mundos. Em que os outros estão desfocados, e em que nós somos os outros.
Nevoeiro. Estrada. O mundo encolhe. As encostas, as árvores e os muros partiram. Fica a estrada. Só. Sem início e sem fim. Estrada sem destino. Sem antes e depois. Sem tempo.
Estrada. Rua. Cidade. A chave roda. A porta abre-se. Os mundos tocam-se. Mais portas. Outros mundos.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Artigo 75.º

A entrevista ao Primeiro-Ministro, realizada esta semana, deu rapidamente azo a uma discussão sobre a gratuitidade do ensino, a escolaridade obrigatória e a (in)constitucionalidade de eventuais medidas nestes domínios. Nos jornais explanaram-se modalidades com impacto no financiamento do ensino: cheque-ensino, contatos de associação, concessões a privados. Em foco esteve o artigo 74.º da Constituição da República Portuguesa, e as interpretações expressas por diferentes constitucionalistas.

Curiosamente, não ouvi, nestas discussões, mencionar o Artigo 75.º, que foca o papel do Estado na rede de ensino, e que aqui reproduzo: "1. O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população. 2. O Estado reconhece e fiscaliza o ensino particular e cooperativo, nos termos da lei.".

Na versão originária, a expressão aplicada à rede era "estabelecimentos oficiais", tendo passado a "estabelecimentos públicos" na revisão de 1982. Esta número não foi objeto de mais nenhuma modificação, nas sucessivas alterações da constituição que ocorreram até 2005. Ora uma rede de "estabelecimentos públicos", que cubra as necessidades de "toda" a população parece ser bastante claro e explícito, e levará, com certeza, a todo um outro debate.

A Rede, em versão radiofónica

Adaptação radiofónica da entrada A Rede (I), para o Click, emitido hoje, na Antena 1:
http://www.rtp.pt/programa/radio/p3053/c100659

As redes são feitas de linhas e de nós; de cruzamentos e ligações; os fios podem ser finos ou espessos; e os nós grandes ou pequenos; as redes podem assumir diferentes formas e padrões, regulares ou irregulares; umas são densas, outras rarefeitas. E todas têm usos próprios.

Da rede de ensino superior diz-se que deve ser racionalizada; que tem instituições a mais; que é necessário reduzir custos, gastar menos ou distribuir por menos. Pouco se fala do seu uso actual e, menos ainda, do uso que deverá ter. Ora esta rede não é apenas uma, mas várias.

Existe a rede de licenciaturas e mestrados que, na verdade, de rede pouco tem. Tem os nós - universidades e politécnicos – mas são escassas as ligações entre eles: alguns cursos partilhados, alguns professores que se deslocam. Esta rede, pouco rede, mexe, no entanto, com uma outra - a da ocupação do território, das cidades e das vilas, das estradas e dos caminhos de ferro; algumas centenas de milhares de estudantes movem-se para os nós onde se ensina; por vezes regressam à origem; muitas outras, não.

Existe, também, a rede de investigação, em que grupos de diferentes instituições, sobretudo de universidades públicas, colaboram entre si, criando conhecimento. Esta rede não é apenas nacional; faz parte de outra muito mais vasta, com fortes ligações à Europa e para além dela. A investigação é, seguramente, uma das atividades mais internacionalizadas do País, baseada numa grande mobilidade de docentes e investigadores, e em significativos fluxos financeiros.

Existe, ainda, uma terceira rede, que envolve empresas, instituições públicas e associações. Através dela usa-se o conhecimento de um modo mais alargado, trabalha-se em conjunto, criam-se e aperfeiçoam-se produtos e serviços, atualizam-se conhecimentos. Aqui emergem muitos outros nós, para além das universidades e politécnicos, bem como uma diversidade de ligações, locais, regionais e nacionais.

Mexer num simples nó da rede de ensino superior é mexer em todas estas redes. É possível; é inevitável; e é mesmo desejável. Mas para o fazer bem é preciso compreender todas estas dimensões e, desde logo, saber o que se quer, tendo presente que diferentes pessoas querem diferentes países, ainda que todos sejam Portugal. É por tudo isto que a dita racionalização não pode ter apenas por base a linha das despesas, nem ser feita por mero decreto.