domingo, 17 de junho de 2012

"Não há remédios técnicos para males éticos"

No sábado, o Público trouxe mais um artigo de Pacheco Pereira, intitulado "Ajustamentos", em que, entres outros aspetos, refletia sobre o uso da linguagem na política, sobre o significado da escolha de palavras e sobre as ideologias. Neste caso sobre a agora omnipresente palavra - ajustamento. Recomendo a leitura.

António Nóvoa, no discurso de 10 de junho, refiriu-se às palavras como meio de "ajudar a pensar, a conversar, a tomar consciência". Orwell, em "1984", apresentava a linguagem como instrumento de manipulação, através do uso deliberado de determinados termos e da supressão de outros. Ambos os usos coexistem.

No Público de hoje foi a vez de ler Bagão Félix, em artigo intitulado "Indigência Moral" e do qual retirei o título para esta entrada de blog. Uma reflexão sobre o papel das elites, as organizações, a relativização de tudo, a diferença entre comportamentos legais e comportamentos éticos. Um pequeno extrato de um artigo para pensar: "Também a linguagem tem sido sujeita a uma anestesia ou mudez moral que favorece o relativismo ético. Hoje o mentiroso não mente. Diz inverdades. Certas fraudes já não o são. Foram promovidas tecnocraticamente a imparidades.Um conflito de interesse até pode não o ser. Diz-se, então, que cria sinergias. A batota depende do batoteiro. A ética do esforço conta menos. Vale mais a esperteza arrivista. O valor da exactidão esvazia-se. O que conta é o calculismo da inexactidão. A flexibilidade é a palavra de ordem para tudo, até mesmo para o caráter e conduta moral. A iconografia do sucesso, mesmo que aparente, substitui a iconografia dos valores, mesmo que imprescindíveis."

terça-feira, 12 de junho de 2012

Debate vs. soundbytes

Muito se fala de transparência, verdade e virtudes afins. Mas pratica-se pouco.

Um bom exemplo é a apregoada discussão em torno da racionalização da rede do Ensino Superior. Apregoada, mas que, como verdadeira discussão, é inexistente. Senão vejamos. A posição do Governo nesta matéria é desconhecida. Sem comentários! A posição dos partidos não vai além de uns quantos soundbytes tentando compaginar racionalização (leia-se redução de custos), com aumento do acesso, desenvolvimento regional e compromissos locais. Ou seja, sem fazer opções. Artigos de opinião são raros, para além dos que recentemente versam a fusão de duas universidades em Lisboa, o que em si é um mero pormenor da rede, ou a redução da oferta de cursos, questão bastante diferente. Não foram realizados, ou não são conhecidos, estudos que vão para além da compilação de dados do que hoje existe, e que atinjam o "porque existe", o que "poderia existir" ou mesmo o que "gostaria que existisse". Repete-se que temos instituições a mais; e volta-se a repetir; e repete-se porque se ouviu dizer; e passa a ser uma "verdade" comum. Mas não se questiona. Não se pergunta: Para que queremos as instituições? De que instituições precisamos? Onde precisamos delas? Apontam-se alguns dados soltos e comparações internacionais avulsas, com eco na comunicação social, mas sem a devida sustentação.

Vale a pena olhar "lá para fora", com olhos de ver, e também refletir sobre o que se vê. Em Inglaterra o Governo elaborou e submeteu a discussão pública (11 de junho a 11 de setembro de 2011) o "Higher Education White Paper - Students at the Heart of the System". E publicou agora a sua resposta aos contributos recebidos. Eis um extrato da publicação: "We will further stimulate competition in the sector by reducing the ‘numbers’ criterion for university title from 4,000 higher education students to 1,000. This will widen access to university title for smaller, high quality providers". Aumentar a competição permitindo a existência de universidades pequenas mas de elevada qualidade (até soa estranho entre nós). Pode-se concordar ou discordar. Mas essa é a vantagem de se ter ideias, de as discutir e de as comunciar de um modo eficaz. Caso contrário sobra o ruído.

sábado, 9 de junho de 2012

O que vemos ao olhar para um telemóvel?

Investigação aplicada, ou nem tanto, nas "Notas sobre o ensino superior" (Click de 9 de junho, Antena 1).

O telemóvel está presente em todo o lado e a todo o momento; através dele falamos a milhares de quilómetros ou a meia dúzia de metros; envia mails; liga-nos à net; permite fazer fotografia, ouvir música e ver vídeo; substitui isqueiros nos concertos e lanternas no escuro. Não precisamos de saber muito para o usar, mas sabemos a falta que faz ficar sem rede, sem bateria ou, pior, sem resposta do outro lado.
E o que vemos ao olhar para um telemóvel? Talvez a cor, a marca ou o tamanho … No entanto há todo um universo escondido, ainda que já descoberto, para além da superfície. Podemos vislumbrar as formações geológicas, o petróleo que nelas se esconde e a química que o transforma em plástico colorido. Podemos tocar materiais raros, como o selénio e o ouro, extraídos das entranhas da terra e alinhados na tabela periódica de Mendeleev. Conseguimos seguir a radiação electromagnética, através das camadas da atmosfera, de antena para antena, revisitando Maxwell e Hertz. Ou entrar nas células humanas para compreender a interação entre a radiação e a vida. Acompanhamos as órbitas dos satélites e o lançamento de foguetões, na companhia de Kepler, Newton ou Tsiolkowski. Usamos as leis da ótica para focar imagens e a micro-eletrónica para as gravar. Ouvimos os códigos que comprimem sons e imagens, e que permitem que as máquinas falem entre si. E vemos um sem número de símbolos, de equações e de teoremas matemáticos, traçados desde Pitágoras a Von Neumann, e com os quais descrevemos a natureza e os nossos próprios pensamentos.
O telemóvel é um exemplo notável de investigação aplicada, que origina empresas e postos de trabalho, e alimenta um negócio de milhões.
Mas é preciso não esquecer que as aplicações de hoje emergem do conhecimento desenvolvido e transmitido ao longo dos séculos; gerado, acima de tudo, pela vontade de compreender e de criar; e a que outros darão, um dia, usos nunca antes imaginados.
Esta investigação, que não tem tradução visível no aumento do PIB, no equilíbrio da balança comercial ou na redução do desemprego, não é um luxo. É antes a continuação do caminho que nos trouxe ao que somos hoje e ao que seremos amanhã; é indissociável da natureza humana; e é parte integrante da missão das Universidades.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Outubro 2002 - A praia

Marte era uma praia distante, e os homens espalhavam-se por ela em ondas. Cada onda era diferente e cada onda era mais forte. A primeira onda trouxera consigo homens habituados ao espaço e ao frio e a estar sós, os exploradores, os mineiros e os cientistas, prontos a tudo, valentes e aventureiros. Marte não os assustava pois estavam habituados ao perigo e às empresas arrojadas. Vieram e conseguiram tornar Marte mais habitável, mais confortável, para que os outros tivessem suficiente coragem para os seguir. Construíram, estudaram, descobriram, organizaram as futuras colónias e planearam a urbanização do planeta.
Tinham sido os primeiros homens.
Todos sabem quem foram as primeiras mulheres.
Os segundos homens deviam ter vindo de outros países com outras ideias e outras civilizações. Mas os foguetões eram americanos e os homens de Marte eram todos americanos e assim continuava enquanto a Europa e a Ásia e a América do Sul e a Austrália ficavam para trás sem saber bem que atitude tomar. O resto do mundo estava enterrado na guerra ou em pensamento de guerra.
Por isso os segundos homens foram também americanos. Vieram dos diversos estados e das plantações do interior, e encontraram repouso e paz na companhia dos silenciosos pioneiros que sabiam servir-se do silêncio como meio de conseguir paz depois da vida turbulenta das cidades americanas.
E entre os segundos homens que vieram para Marte havia homens que, pelos seus olhos, pareciam ir em busca de Deus...

Crónicas Marcianas (1951) de Ray Bradbury (22 de agosto de 1920 - 6 de junho de 2012)

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Alienação

A nossa envolvente muda muito rapidamente: as roupas, os objetos, as paisagens construídas e destruídas, a maneira de fazer memória. Talvez por isso tenhamos a tendência a acreditar que a história, as histórias, não se repetem; que as circunstâncias de um tempo são diferentes das de outro tempo, e que isso faz toda a diferença; que o conhecimento e a capacidade de hoje levará a soluções distintas; que hoje somos os protagonistas. Mas o Homem, na sua essência, não muda a esta velocidade. Os contos revivem sentimentos já contados, ainda que envolvidos noutros cenários. E, também por isso, vale a pena ler escritos do passado, onde, por vezes, nos cruzamos com o presente.

Tudo isto a propósito de um texto que hoje li, e que acabou de fazer 40 anos. 1972 era um outro mundo, em plena guerra fria entre os EUA e a já desaparecida União das Repúblicas Socialistas Soviéticas; antes do choque petrolífero de 73, do 25 de abril de 74 ou do acidente nuclear de Three Mile Island; a gasolina tinha chumbo e o homem abandonava, nesse mesmo ano, os voos espaciais em direção à Lua; o computador pessoal, a internet e os dispositivos de comunicação pessoal eram ainda sonhos.

Foi nesse outro mundo que James Reid se dirigiu à Universidade de Glasgow, começando com estas palavras: "Alienation is the precise and correct word for describing the major social problem in Britain today. People feel alienated by society. In some intellectual circles it is treated almost as a new phenomenon. It has, however, been with us for years. What I believe to be true is that today it is more widespread, more pervasive than ever before. Let me right at the outset define what I mean by alienation. It is the cry of men who feel themselves the victims of blind economic forces beyond their control. It is the frustration of ordinary people excluded from the process of decision making. The feeling of despair and hopelessness that pervades people who feel with justification that they have no real say in shaping or determining their own destinies."

E continua, com muito mais para dizer, sobre a organização da sociedade, a atenção aos outros, o papel do ensino, o emprego e o desemprego. Vale a pena ler (www.gla.ac.uk/media/media_167194_en.pdf) até porque, afinal, o Homem não mudou assim tanto desde 1972.