domingo, 30 de março de 2014

A supremacia do dinheiro

O Estatuto do Estudante Internacional, com efeitos no próximo ano letivo vem, inevitavelmente, recolocar na agenda a discussão sobre o acesso ao ensino superior e sobre o montante das propinas. Este Estatuto permite, à semelhança do que sucede noutros países, cobrar propinas mais elevadas a estudantes provenientes de determinadas origens geográficas, no caso, a estudantes que não são da União Europeia; e que ingressarão mediante um concurso específico gerido por cada instituição não competindo, portanto, com os estudantes nacionais.

Financiamento, acesso, propinas, equidade. São temas relevantes, em particular para os sistemas públicos de ensino superior.

E a discussão começou já, de forma rápida. No Expresso de ontem o Diretor da Nova SBE, Faculdade da Universidade Nova de Lisboa, propõe uma propina mais elevada também para os alunos nacionais, embora mantendo a repartição do esforço entre Estado e Estudantes; numa propina de 4000€, por exemplo, os estudantes continuariam a pagar diretamente cerca de 1000€, contribuindo o Estado com uma bolsa de 3000€. Mas, adicionalmente, defende que "as escolas públicas devem poder admitir alunos acima do numerus clausus desde que suportem por inteiro aquela propina, alargando a alunos nacionais o regime que, a partir de março, vigora para alunos internacionais.".

Estas propostas, apresentadas como uma sequência quase lógica - se algo é aplicável a estudantes interacionais porque não a estudantes nacionais - preconizam a supremacia do dinheiro e discriminam, entre portugueses, no acesso ao Ensino Superior Público português: uns entrarão por mérito, aferido por um concurso nacional; e outros entrarão simplesmente porque podem pagar.

Todos os temas podem, e devem, ser discutidos. Mas há princípios que não devem ser postos em causa. E há ideias que devem ser refutadas liminarmente. Esta é uma delas.

sábado, 29 de março de 2014

A ponta da cauda

Notas no Click de hoje; passou na Antena 1.

A educação em Portugal mudou muito, e para melhor, nos últimos 40 anos: muito mais pessoas acedem à educação, por mais tempo, com maior igualdade entre sexos. De quase 1,8 milhões de analfabetos passámos para 500.000.

Mas continuamos mal em muitos dos indicadores. Sobretudo, porque a formação é um exercício de longo prazo, em que a má posição de partida, as perdas e as hesitações, têm um efeito cumulativo e levam muito tempo a recuperar; não só no percurso de cada um, como em termos da utilização do conhecimento na economia e na inovação, neste mundo em que a posição em relação aos outros, importa.

Recuperação que é hoje mais complicada, pela conjugação de três fatores: baixa natalidade, que significa menos estudantes, menos trabalhadores, menos capacidade de renovação; elevada taxa de abandono escolar, só superada pela da Espanha, o que limita as perspectivas de futuro; desemprego elevadíssimo, que desperdiça o potencial existente em tantas pessoas.

É um problema de quantidade, neste país pequeno e a encolher, e de qualidade, com pessoas, em média, menos qualificadas do que as dos nossos parceiros e concorrentes.

Veja-se a população entre os 25 e 64 anos que completou o ensino secundário. Portugal apresenta, em 2013, o pior resultado da União, não chegando sequer a 40%; bem longe da média que vai em 75%; mais distante ainda dos países da antiga Europa de leste.

Um outro exemplo, menos influenciado pelo peso do atraso histórico: a geração da integração europeia, nascida no início dos anos 90. Apenas 69% dos jovens com 20 a 24 anos têm o ensino secundário, face, por exemplo, a 87% na Grécia ou a 89% na Irlanda, nossos parceiros da crise.

Enfrentar esta questão, estrutural, requer a valorização da aprendizagem, o reforço do ensino em todos os níveis e, principalmente, uma nova formação ao longo da vida, única via para inverter, de forma significativa esta realidade. E requer uma mudança no tecido económico, nas organizações e nas lideranças da sociedade, de forma a gerar, não só, mais emprego, como um emprego diferente.

Não se trata, por isso, de entrar, rapidamente, num qualquer pelotão da frente. Nem sequer de atingir a média, ao virar da esquina. Trata-se de uma luta de longo prazo para sair da cauda, ou mais precisamente, para sair da ponta da cauda.

sábado, 15 de março de 2014

Mundo inteligente

O mundo parece ter-se tornado mais inteligente. Basta ouvir descrições científicas, técnicas ou de marketing; ler políticas europeias e programas de financiamento; ouvir discursos nacionais, regionais ou locais. Estamos rodeados de telemóveis e televisões inteligentes; de têxteis e dispositivos de iluminação; de cozinhas e de equipamentos médicos; de automóveis e estradas que decidem; querem-se regiões, cidades e edifícios inteligentes.Transforma-se inteligência num adjetivo para coisas. Rareiam as referências à "outra" inteligência, tornada anacrónica ou menos importante, menos necessária, dispensável, substituível. E as pessoas?

"E quem prepara essas fitas de Educação? Serão especialistas educados para esse fim por meio de outras fitas mais avançadas? E então quem fará as fitas para esses especialistas...? E assim sucessivamente ...por mais avançadas que sejam as fitas de Educação, terão de haver em qualquer sítio homens e mulheres com capacidade de ter pensamentos originais, de inventar e de preparar as fitas com as novas técnicas...", em Profissão, de Issac Asimov.

quarta-feira, 12 de março de 2014

A insustentável leveza

A dívida é sustentável, dizem uns. A dívida é insustentável, dizem outros. Atos de fé, de auto-convencimento, de vontade, de desejo, de saber, de ignorância, ou uma mistura de tudo isto. Se acreditarmos que as palavras têm valor, e que os seus significados são importantes, tudo se torna mais perturbador, porventura mais claro. A começar pelo significado de sustentabilidade.

In Priberam: sustentável, adjetivo de 2 géneros, que tem condições para se manter ou conservar.

A dívida é sustentável.
A dívida tem condições para se manter ou conservar.
Eu não quero que a dívida se conserve.
Será que "eles" se ouvem?
Será que conhecem as palavras?
Será que estão anestesiados ou que querem anestesiar?
Podemos sempre reler Orwell e o uso da linguagem.

A dívida é pagável?

In Priberam: pagável, adjetivo de 2 géneros, que pode ou deve ser pago.

A dívida deve ser paga? Deve.
A dívida pode ser paga? Nos moldes atuais não me parece.
Como dizia o outro "é fazer as contas". E tornou-se um episódio.
Mas é preciso fazer as contas. E mostrá-las.
Não apenas até maio, mês símbólico para outra fé, em relógios avariados.
Contas até ao saldar da dívida.
Em anos, em anos-luz ou em anos-sombra.

sábado, 1 de março de 2014

O indicador composto (2)

Sobre usos e desusos de indicadores, em complemento da entrada "O indicador composto"
(http://notasdasuperficie.blogspot.pt/2014/01/o-indicador-composto.html).

"The use of scoreboards or benchmarking rank tables may be dangerous because the numbers are taken at face value with little discussion of their validity (Pavitt, 1988). Considerable room exists for manipulation by selection, weighting and aggregating indicators."

"Another possible fruitful area for research would be on how S&T indicators are used (and misused) in national policymaking system. If the main use of S&T indicators is to salve the pride of a country's politicians and citizenry, then the costs of possible inaccuracies or other shortcomings are low. If, however, a strong and direct link is found to exist between such indicators and public policy then concerns about the possible negative impacts of their shortcomings become much greater."

Muito apropriado quando Governo e partidos da maioria brandem este tipo de indicadores para justificar mudanças na política científica.

Excertos de "Indicators for national science and technology policy: how robust are composite indicators?", 2004, de H.Grupp e M.E. Mogee, Research Policy, n.º 33, pp 1373-1384, Elsevier. Os autores pertencem, respetivamente, ao Instituto para Investigação em Política Económica da Universidade de Karlsruhe e ao Instituto Fraunhofer.