sexta-feira, 24 de maio de 2013

E há tanto para fazer, no mundo

Alternâncias e ciclos. Palavras usadas por quem quer ascender ao poder, por quem quer pemanecer no poder, por quem se vê a sair do poder. A alternância dita democrática como movimento pendular, ora para cá, ora para lá, com o pêndulo fixo no mesmo ponto, oscilando entre os mesmos extremos. Fim de ciclo, início de outro; nova corrida, nova viagem; e a história que se repete. E o mundo? E os outros?

"Percebe-se, deste modo, como as alternâncias, ou os ciclos, na governação (a nível nacional, europeu ou mundial) não nos podem excitar quer intelectual, quer moralmente. É que só deles parecem beneficiar aqueles que se organizam vitoriosamente para a conquista do poder político público. O mundo que espere.
E há tanto para fazer, no mundo. E tanto por fazer. Há certamente que começar, de novo, mas sem iniciar mais um ciclo. Há que quebrar a ignorância, fazendo reviver a esperança. O futuro será luminoso, se iluminado pelo conhecimento dos erros do passado."

João Caraça em À procura do Portugal Moderno (2003)

sábado, 18 de maio de 2013

Conhecimento descartável

Muito do conhecimento disponível não é, pura e simplesmente, utilizado nas decisões do dia a dia, na gestão, na política.

Desde os primeiros níveis de ensino até ao ensino superior é frequente ouvir estudantes dizer "isso é matéria de outra disciplina", "já demos isso, mas foi no ano passado", "não é para saber porque não sai no teste".

É a valorização do conhecimento efémero, descartável, que não se transforma em sabedoria, sabedoria de saber. Do conhecimento instrumental para passar ao próximo nível no jogo do ensino. E que o próprio modelo de ensino, em conjunto com a falta de colaboração entre professores, propaga; um modelo fragmentado à partida, deslaçado entre matérias e níveis, e ao sabor de cada docente. "Aprenderam assim mas aqui agora é assado", "já deviam ter dado isto", "esqueçam o que aprenderam".

A propósito dos bons resultados que as escolas de gestão têm obtido em classificações internacionais, João Duque, Presidente do Instituto de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa, escreve hoje, no Expresso: "Mas se as escolas de gestão portuguesas são tão boas, por que razão temos os indicadores económicos tão em baixo? Dá vontade de perguntar se esquecemos os ensinamentos das aulas, se são os custos de contexto, se a economia pública, ou se pura e simplesmente fazemos como S. Tomás...".

E não é só na gestão que isto acontece.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Respeitosas divergências

Com opinião; com respeito; sem reservas; sem cerimónias.

"Mas homens diferentes vêem frequentemente o mesmo assunto de formas diferentes e, por isso, espero que não seja considerado uma falta de respeito a esses cavalheiros que eu, tendo opiniões totalmente opostas às deles, exponha os meus sentimentos livremente e sem reservas. Não é altura para cerimónias."

Extrato da intervenção de Patrick Henry, advogado, natural da Virgína, proferida a 23 de março de 1775 na assembleia daquela que era, então, uma colónia britânica, e em que fez a apologia da guerra de independência.

Discurso incluído na obra: 50 grandes discursos da História (2011), seleção e apresentação de M. Robalo e M. Mata.

sábado, 11 de maio de 2013

Com "sensu"

"Consenso" tornou-se a mais recente palavra da família das palavras ocas, despidas de sentido, de sensu. É o que acontece à maioria das palavras que entram no jargão político e são repetidas até à exaustão; exaustão de quem as ouve.

Consenso, acordo de uma grande maioria da opinião pública.
Consenso, consentimento, anuência.

Invoca-se o primeiro, o acordo, na esperança de se alcançar o segundo, o consentimento. Porque para acordo é preciso, desde logo, haver matéria, e ação de ambos os lados; para o consentimento basta a resignação de uma parte.

Prefiro coisas com sensu, com bom sensu, do que um qualquer consenso, acordado entre uma grande maioria, mas desprovido de nexo.

Prefiro argumentar e discordar, abertamente, do que entrar em consensos em torno de nada ou, mais frequentemente ainda, em consensos que o são apenas de nome; consensos em que, por vontade própria ou por falta dela, as vozes fogem do espaço público e remetem-se para os corredores, a resignação se instala e a passividade cresce, e as pessoas se recolhem nas suas conchas não participando, afinal, no dito, mas aguardando por melhores dias.

O consenso não tem propriedades mágicas, não resolve nada por si só, não engana os olhares, de dentro ou de fora.

A procura do consenso, essa sim, se for genuína, pode ter o efeito estimulante de discutir alternativas, de ouvir e de tentar compreender o(s) outro(s), de questionar as nossas certezas, de reunir opiniões e maneiras diferentes de ver o mundo atual e de imaginar os mundos que se querem. Independentemente da decisão final e do modo como é tomada.

"(...) consensus is always desirable, though rarely found in practice. Fortunately it is not essential either.", Peter McCaffery, The higher education manager's handbook.

domingo, 5 de maio de 2013

A estrada chama

Manhã serena, de sol temperado por nuvens altas.
A estrada chama.
Deslizo, quase em silêncio.
O toque do vento, sempre presente nesta terra; hoje, ligeiro.
Meio homem, meio máquina; pés-pedais, subindo e descendo; cadência certa.
O cheiro quente das salinas.
Uma rapina em voo baixo, muito baixo, mesmo ali; talvez a mesma de outro dia.
Estrada quase deserta.
Uma borboleta que passa; algumas aves.
Barcos imóveis, sós, sem gente.
Ao longe adivinha-se o mar, sob um tapete de nuvens, cinzentas.
No veleiro, apenas imaginado, o som do vento e das ondas; o céu escuro; sol em terra.
Uma pequena inclinção; um pouco mais de força.
A ponte.
Um estreito carreiro para os homens-máquina.
O chão é ondulado, incómodo, alaranjado.
Do lado esquerdo a grade, que nos separa da estrada onde as máquinas têm pessoas.
Do lado direito a ria, azul, cheia.
Do lado de lá da ponte, que agora é de cá, outra luz, mais sombria, outro ar, mais húmido.
Nevoeiro quase, mas que não toca na terra.
A ponte é sempre uma passagem.
Caminho de regresso, o mesmo mas diferente.
A estrada move-se em sentido contrário; o vento também.
Novamente uma rapina, talvez a mesma, a de sempre, agora sobre os campos.
Um comboio parado, sem destino.
Montes de areia.
Pensamentos, fragmentos, palavras escritas.
Curvado, mais máquina ainda, a estrada passa, veloz.
Cidade.
Tempo que já foi; tempo real; tempo imaginado; tempo medido; uma hora apenas.

sábado, 4 de maio de 2013

Frankenstado

Sustentabilidade; austeridade; crescimento; défice estrutural; exportações.
Imperativo nacional; estratégia; consenso; construção do futuro.
Credores; parceiros; culpados; virtuosos; aliados.
Crentes; descrentes.
Patriotas.

Apregoam-se frases feitas.
Responsáveis; ex-responsáveis; futuros responsáveis; os que pairam por aí.
Comentadores; políticos em trânsito televisivo; jornalistas.
Pessoas comuns, no trabalho e na rua.

Vendem-se lugares que se tornaram comuns.
Há quem os compre, por convicção ou à falta de melhor.
Esperando que o poder da palavra crie uma realidade alternativa.

Invoca-se a necessidade de reformar o Estado, mas não se debate o papel do Estado.
Somam-se parcelas subtrativas, em busca de um resultado mágico.
Mas a meta, o compromisso, o designío, permanece inalcançável.
E então anunciam-se outras metas, sempre irrefutáveis.
E diz-se que o rumo é certo.

Cortar, cortar sempre.
A direito ou a torto.
Com demagogia.
Com intocáveis.

Há quem queira um estado mínimo.
Miragem de um Estado Bonsai.
Miniatura com harmonia.
A mão empunha a tesoura.
Sem visão, sem arte, sem tempo.
Aprendizes de feiticeiros.

Há quem queira um estado máximo.
Tudo ao alcance de todos.
Aconchegante e indolor.
A mão procura, em vão, o que distribuir.
Sem visão, sem arte, sem tempo.
Aprendizes de feiticeiros.

Os "outros", tão seguros como os "uns".
Enformar? Reformar? Deformar? Cercear?
Estado.
Insuflado por uns.
Esmagado por outros.
Puxado em diferentes direções.
Cambaleando.
Frankenstado.