terça-feira, 11 de julho de 2023

A tentação de Frankenstein

Foto de freestocks na Unsplash

 






Cabeça. Tronco. Membros. Um daqui, outro dali, e mais uns quantos de qualquer outro sítio. Essa é, muitas vezes, a tentação quando olhamos "lá para fora", em busca de exemplos, de práticas, e de soluções. Combinando o que ainda não foi combinado. Na esperança de que a criatura criada seja o melhor de vários mundos. 
Também no ensino superior, e em particular quando se procura reformar as reformas. Como se vai ouvindo em algumas discussões, agora a propósito do Regime Jurídico do Ensino Superior, como antes a propósito de propinas, fundações, fusões ou consórcios.
O problema é que tal contraria, desde logo, a noção de um sistema de ensino superior. Porque um sistema pressupõe ligações, dependências, relações complexas. Porque um sistema reage, como medida sanitária de autoregulação e sobrevivência, ao corpo que lhe é estranho. Porque, por tudo isto, as comparações de meros pedaços são mais enganosas do que virtuosas.
Não basta comparar o valor das propinas em diferentes países, e daí tirar conclusões sobre o que é ou não possível, sem discutir o modelo de financiamento, de quem paga o quê, e de onde vem o dinheiro. Não basta comparar a maior ou menor facilidade na criação de cursos, sem discutir o modelo de regulação dos mesmos, parecendo já longínquo o tempo em que se clamava contra a excessiva multiplicação dos mesmos. Ou a fixação do número de vagas, sem discutir o todo nacional, a concorrência entre instituições e entre regiões, os recursos. Ou o papel das instituições de ensino superior na requalificação, sem discutir a fundo horários, esquemas de formação, os recursos necessários e, sobretudo, atitudes.
Também não serve de muito apregoar determinados princípios, muitas vezes tidos como consensuais, deixando-os a pairar, vagamente, vagarosamente, sem concretização. Maior autonomia, como se a autonomia total fosse, necessariamente, a solução socialmente mais equilibrada e pretendida, ignorando a teia de equilíbrios em que assentam as várias autonomias e níveis de controlo. O sistema binário, que não o é em termos de instituições, cada vez mais indistinto em termos de formações, e ainda separado em termos de carreiras docentes (que não das outras). A diversidade de perfis institucionais, que carece de elaboração e que muitas vezes parece querer significar, no fundo, autonomia para angariar livremente financiamento. 
Para além destas leis enquadradoras, existem outras realidades, que frequentemente têm um peso maior no dia das instituições, de quem nelas trabalhas, e de quem nelas estuda. Como o Orçamento de Estado e demais instrumentos associados à política orçamental, que tem sido o instrumento preferido dos sucessivos governos e equilíbrios parlamentares para atropelar, alterando casuisticamente, ano a ano, disposições legais que requerem estabilidade (como é o caso das propinas e das "compensações" que lhes estão associadas).
Realidades outras, determinantes, também dentro das próprias instituições de ensino superior, como a  frequente e nefasta falta de separação entre governo e administração, com linhas de fronteira intencionalmente nebulosas, o escasso escrutínio pelos órgãos com responsabilidade para tal, e um nível de debate de questões fundamentais relativamente reduzido.
A revisão do RJIES anda por aí, a das carreiras de investigação também. A do financiamento vai sendo sucessivamente anunciada, mas ainda não se vislumbra. 
Frankenstein à espreita?