segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Mundos paralelos

Habito mundos paralelos. Como este em que me encontro agora, do tamanho de uma sala, lareira acesa, luz de inverno entrando pela janela, o som do lápis sobre o papel, o som da cidade, abafado, que hoje parece apenas feito de pássaros. Mas há outros mundos, tão reais como este. Imateriais. Materiais. Mundos em que se vive e se sente. Povoados por gente, por seres que não são gente, por fantasmas e demónios, por objetos iguais mas diferentes, por paisagens incompletas, por cores de outras paletas. Sei que existem: já lá estive. Em sonhos dormidos. Em sonhos acordados. Ao passado que foi. Ao passado evitado. Ao passado que podia ter sido. E ao futuro que vai ser, que talvez venha a ser. Por vezes basta um cheiro familiar, já há muito não sentido, e eis que atravesso uma porta, entrando num outro tempo. Mais do que regressar ao passado é como se um pedaço de passado se incrustasse no presente, arrastando com ele sombras difusas, e criando um agora diferente. Há outras portas, mas só sabemos que o são quando por elas passamos: palavras, objetos, rostos, olhares, pensamentos. Por vezes são janelas, mantendo alguma ordem nos mundos, permitindo apenas olhar, às vezes ouvir, quem sabe, ser visto. Outras vezes ainda são espelhos, refletindo o olhar de quem olha. Mundos separados, misturados, ligados. Não estou sempre aqui, embora não deixe nunca de estar aqui. Sou habitado por mundos paralelos.

sábado, 28 de dezembro de 2013

2014

Edição de 28 de dezembro das "Notas sobre o Ensino Superior" no Click, Antena 1.

É tempo de entrar em 2014, ano para o qual se anunciam alterações de monta no ensino superior. Aqui fica uma lista de 10 temas que, muito provavelmente, estarão presentes ao longo do novo ano.

Um – A alteração ao Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior e a redefinição do estatuto de autonomia. Em teoria esta será mais alargada, mas a prática vem desmentindo o discurso oficial; por isso, tão ou mais importante, será a plena afirmação e exercício da autonomia, por universidades e politécnicos, sem quaisquer concessões.

Dois – Um dilema sempre presente mas continuamente adiado: a diferenciação entre ensino universitário e politécnico.

Três – A reorganização da rede de ensino superior. Fala-se muito de como; pouco do porquê; menos ainda do para quê; no entanto, criou-se um sentimento de inevitabilidade, de urgência, e até de perigoso sentido único; as primeiras movimentações já aí estão.

Quatro – O modelo de financiamento. Não se conhecem propostas mas é urgente que o Estado torne claro qual a responsabilidade que quer, ou que pode, assumir, numa perspetiva de médio prazo; 2014 será apenas um ano de transição.

Cinco - A execução orçamental, certamente com instituições em dificuldade, e a preparação do orçamento para 2015.

Seis – A criação, em pouco mais de seis meses, dos novos Cursos Superiores de Especialização, com tantas incógnitas como oportunidades, para quem as souber aproveitar.

Sete – As regras para a definição de vagas. Deviam ser já conhecidas, para permitir opções sustentadas e planeamento, e não apenas a um par de meses do início do ano letivo, como é habitual.

Oito – A evolução da procura de cursos superiores, condicionada pelos resultados do secundário, por perceções de qualidade e de futuro, e também pela capacidade financeira de prosseguir estudos.

Nove – A internacionalização e o Estatuto do Estudante Internacional, domínios em que as universidades podem assumir estratégias diferentes e mesmo colaborar entre si, para um maior impacto.

Dez – As pessoas. As pessoas que fazem o ensino superior; a capacidade de se reorganizarem; de melhor decidir; de abrir caminhos. E as pessoas que fazem a sociedade e que devem afirmar o que querem para o País.

Venha 2014!

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Estudantes, números e ficções

Os números são muitas vezes usados, vezes demais, no discurso político, que não se restringe ao discurso partidário, como a prova de uma ideia, de um conceito, de uma linha de ação, de uma superioridade. São usados e, mais frequentemente ainda, abusados, distorcidos, isolados, desmembrados, manipulados, convertidos. Esquecendo que os números também vivem em sociedade, que há um antes, um agora e um depois, e que um número, sendo sempre o mesmo, também é diferente no que nos diz. Por vezes são discutidos, esgrimidos uns contra os outros, pelos seus donos, nas lutas entre números, populares em alguns bairros. E há mesmo quem deles fale, com abundância e certeza, sem nunca os ter visto. Mas raramente são lidos, palavra a palavra, contando histórias, com finais certos ou com finais por terminar, por outros números que ainda hão-de vir.

Aqui ficam uns números, expostos, com as histórias que neles quiserem ler, com as suas características próprias e os contextos que nem sempre percebemos. Para comparar com algumas leituras com que nos embalam todas as noites.

102.895 estudantes matricularam-se, pela primeira vez, no ensino superior público, no ano de 2011. O maior número de que há registo. Números em queda desde então, para já menos de 90.000 em 2013, aos níveis de 2009-2010.

Dizem-nos que a rede de ensino deve encolher, porque há menos peixe. Mas a rede só serve para pescar o peixe que pela primeira vez está no mar?

Dizem-nos ao mesmo tempo que as universidades devem requalificar portugueses, que os portugueses devem voltar, repito - voltar, à universidade. Dizem-nos ao mesmo tempo que as universidades devem oferecer novas formações, a públicos mais diversos. Mas esses números parecem valer menos que outros números, ainda que iguais em dignidade.

O ano de 2012 foi aquele em que se registaram mais alunos matriculados no ensino superior público: 311.574. Quase mais 30.000 do que em 2009; mais 8.000 do que em 2013 de acordo com a informação mais recente, já de dezembro, disponível por exemplo na Pordata. O Ensino Superior público está a desaparecer?

O ano de 2013 é aquele que conta com menos alunos matriculados no ensino superior privado desde 1997, e encontra-se ao nível de 1992: 67.290 estudantes. O Ensino Superior privado está a desaparecer?

No seu conjunto, e nos últimos anos, só existe diminuição de número de estudantes em 2012 e 2013. Os totais são isso mesmo, totais, mais complexos que as parcelas. Abrangem aqui alunos de licenciatura, mestrado e doutoramento; estudantes que permanecem no sistema durante anos; estudantes que podem até já não estar lá, em mente, ainda que os corpos sejam contados. Não devem por isso conduzir a conclusões absolutas e imediatas.

A relação com os números dá trabalho: é preciso aprender a conhecê-los, respeitá-los, escutá-los. Mesmo quando nos contrariam. E é preciso tempo.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Dar o mote

Um dos motes presentes na página da Universidade de Shanghai: "Be concerned about the affairs of state before others, and enjoy comfort after others. (From Chinese ancient poet by Fan Zhongyan)".

domingo, 1 de dezembro de 2013

Tarde de escrita(s)

Uma sala. O conforto de um puff à janela, com vista para um sol de céu azul. Bill Evans ao piano, The Way to Play. Um gato morno, dormindo encostado, disputando o espaço. Palavras que escorregam das teclas, subindo para a página branca do monitor. Palavras guardadas para amanhã, fechadas na caixa, à espera do papel. Palavras que viajam, voando pelo ar, correndo pelos fios, atravessando máquinas. Palavras que entram noutras salas, como se fossem ditas, como se fossem ouvidas. Tarde de escrita, tarde de escritas.

domingo, 17 de novembro de 2013

Documentos sobre o Ensino Superior em Portugal

Porque não estamos a partir do zero, e porque nem sempre a documentação existente está facilmente disponível, as Notas vão procurar manter à superfície relatórios sobre Ensino Superior, elaborados nos últimos anos e que são do domínio público.

Aviso 1) Nenhum relatório é desprovido de contexto e de pontos de vista.
Aviso 2) Nenhum relatório contém "A verdade".
Aviso 3) Nenhum relatório substitui a decisão.

2013

European University Association, Portuguese Higher Education: a view from the outside

"This report presents an independent appraisal of the problems and challenges facing the Portuguese Higher Education (HE) system. It has been drawn up by a team of experts nominated by the European University Association (EUA) at the invitation of the Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP)."

[Nova entrada] CHEPS, Policy Challenges for the Portuguese Polytechnic Sector

"Our point of departure was that CCISP would benefit from a study that went beyond a set of ‚system descriptions‛ of how the university of applied sciences sector is defined, structured, regulated, governed, funded and staffed in other (European) countries. What would add value to CCISP’s policy discussions would be analyses of the specific policy issues identified by CCISP (e.g. institutional mergers; distinct programme portfolios…) as well as analyses of the success or otherwise of national policies in other countries designed to achieve similar outcomes."

2012

M. Fonseca e S. Encarnação, O sistema de ensino superior em Portugal em mapas e números, A3ES Readings, n.º 4, A3ES.

A presente publicação apresenta a caracterização do sistema de ensino superior, em mapas e em números, incluindo os dados do acesso e corresponde ao nº 4 da série Readings das publicações da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior. Os números 5 e 6 da série, completam o presente volume, contendo os perfis institucionais das instituições de ensino superior público, no que diz respeito às mesmas variáveis aqui consideradas: número de ciclos de estudos, graus, vagas, estudantes inscritos e situação face à acreditação. O nº 5 diz respeito às universidades públicas e o nº 6 aos institutos politécnicos públicos.

M. Fonseca e S. Encarnação, O sistema de ensino superior em Portugal - Perfis institucionais: as Universidades Públicas, A3ES Readings, n.º 5, A3ES.

M. Fonseca e S. Encarnação, O sistema de ensino superior em Portugal - Perfis institucionais: Institutos Politécnicos Públicos, A3ES Readings, n.º 6, A3ES.

2006

Ministério da Ciência Tecnologia e Ensino Superior, OECD Thematic Review of Tertiary Education: Country Background Report - Portugal e respetivos anexos.

This report was prepared by the Portuguese Ministry of Science, Technology and Higher Education as input to the OECD Thematic Review of Tertiary Education. The document was prepared in response to guidelines the OECD prepared to all the participating countries. The guidelines encouraged the authors to canvass a breath of views and priorities on higher education issues and the present report had contributions from several research centres and governmental departments in Portugal.

European Association for Quality Assurance in Higher Education, Quality Assurance in Higher Education in Portugal: an assessment of the existing system and recommendation for a future system.

In 2005 the Portuguese government invited ENQA to appoint a panel of international experts with two interrelated tasks. First, to review the existing Portuguese quality assurance practices as conducted by the Portuguese National Council for the Evaluation of Higher Education, CNAVES. Secondly, to provide recommendations to the Portuguese government on the organisation, processes and methods of establishment of a national accreditation system which would meet the European Standards and Guidelines for Quality Assurance in the European Higher Education Area.

sábado, 16 de novembro de 2013

A reforma do ensino superior

Click de 16 de novembro, na Antena 1 (áudio http://rsspod.rtp.pt/podcasts/at1/1311/582470_145932-1311181034.mp3).

Depois da reforma do estado vem aí a reforma do ensino superior público, assente em três prioridades traçadas pelo Governo: alterar a rede, através de consórcios e fusões; coordenar a oferta de cursos e vagas a nível regional, criando novos órgãos para este fim; e definir um novo modelo de financiamento, que promova o aumento da formação curta. Tudo isto mantendo os objetivos fixados para 2020, ou seja, assegurar que daqui a seis anos temos, não 26% como agora, mas 40% da população entre 30 e 34 anos com um diploma superior.

Para isso teremos de ter mais portugueses no sistema de ensino, o que, de um modo geral, significaria maior despesa para o Estado. Ao invés, as dotações transferidas para universidades e politécnicos são sistematicamente reduzidas, e o mesmo acontecerá certamente em 2015, ano em que a despesa na área social sofrerá um corte adicional de 360 milhões de euros. 

Esta é uma contradição de fundo da política de ensino superior: metas ambiciosas, mais alunos, novas formações, mas menos dinheiro público. A menos que as metas sejam simples desejos. Ou que se preveja um aumento substancial da contribuição privada - assunto que não consta da agenda. E de que forma? Envolvendo, quem sabe, os próprios empregadores, alargando o papel dos privados, ou, com muito maior probabilidade, aumentando o esforço dos estudantes através das propinas pagas, seja de uma forma mais imediata, seja de um modo diferido no tempo, através de um sistema de empréstimos.

Contradição entre palavras e ações que não é única. O Governo proclama a intenção de reforçar a autonomia mas, na prática, a autonomia das instituições é cada vez menor, sob a tutela invasiva do Ministério das Finanças. Proclama-se a autonomia mas pretende-se forçar agora um espartilho regional, que é aliás contrário ao estímulo conferido às mesmas universidades para promover redes de escala nacional na ciência. 

Contradição no próprio modo de debater uma reforma, em que apenas se discutem instrumentos - consórcios, fusões, fórmulas de financiamento, encerramento de cursos com poucos alunos -, que até já existem.

Para uma estratégia de futuro, e porque instituições de qualidade não se fazem de um dia para o outro, importa definir de forma clara o que queremos da rede e das instituições de ensino superior e qual pode e deve ser o papel do Estado. Esta sim, a reforma necessária.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Da relativa segurança à incerteza excessiva

Leituras que soam familiares, descontando o habitual lapso temporal entre o nosso País e outros, bem como as diferenças entre os sistemas de ensino; e que deviam ser debatidas, agora que o Governo anuncia uma nova reforma, que se quer quase instantânea, do sistema de ensino superior.

"One case which has sometimes been made in this country [Inglaterra] for public funding is the need for some stability in an activity that is inevitably long term. (...) Radical changes in all three constitutents of tertiary education (universities, polytechnics and colleges, and Further Education Colleges) were imposed on a system that, before, 1980, had become accustomed to considerable stability in its funding arrangements. Private sector critics claimed that universities expected too much certainty in an uncertain world. The fact is, however, that in recent years policy and management changes have created environmental turbulence as severe as any faced by free market organisations of equivalent size. Excessive security has given way to unreasonable uncertainty."

Gareth Williams, State finance of higher education - an overview of theoretical and empirical issues, em Changing Relationships Between Higher Education and the State, Ed. Mary Henkel and Brenda Little (1999).

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Números e palavras

Outono é a estação do Orçamento de Estado. É uma estação de chuva, de chuva de números, organizados em fiadas de tabelas, com valores absolutos, percentagens e diferenciais, tendências e pontos de viragem, somatórios e subtratórios. Números que, como as gotas de água, têm poder sobre a vida; sobre as nossas vidas.

Em teoria esta torrente segue um leito de prioridades, de olhares sobre a sociedade, sobre o presente e sobre o futuro. Prioridades enunciadas através das palavras, mais ou menos caras, melhor ou pior agrupadas.

Mas, na prática, os números chegam muitas vezes primeiro, empurrando as palavras para segundo plano; noutras ocasiões são as próprias palavras que deixam o palco aos números, de tão temerosas que são, tão vagas, sem rumo definido, contradizendo-se entre si ou sendo contraditadas pelas ações.

Hoje, discute-se 2014, como há um ano se discutia 2013. Com que palavras?

Eis algumas do Relatório do Orçamento de Estado para 2013, quanto a medidas em matéria de Ensino Superior, mas que se perderam no caminho, talvez de tanto gastas ao longo de anos e anos: adoção de novas regras para o financiamento público do Ensino Superior, reforçando a aplicação de critérios de qualidade; medidas de racionalização da rede pública de instituições, para melhor ajustamento da oferta formativa à procura e às necessidades do país em quadros qualificados.

E eis as que, neste domínio, constam do Relatório do Orçamento de Estado para 2013:

Adequar a oferta formativa às necessidades do país em termos de quadros qualificados, através da divulgação das taxas de empregabilidade por curso e por Instituição de Ensino Superior (IES), da aposta nas áreas de Ciências, Engenharia, Tecnologia, Matemática e Informática, e da redução de vagas em cursos com reduzida saída profissional; 

Pobres palavras, tornadas impossíveis, desde logo porque não estão definidas as ditas necessidades, depois porque a divulgação das taxas (voltamos aqui aos números) é um mecanismo macio de intervenção, que não garante a adequação pretendida.

Racionalizar a rede de IES e otimizar a utilização de recursos disponíveis, através do estabele-cimento de áreas de coordenação regional e pela fixação de limites mínimos ao número de vagas disponível para cada curso;

Palavras em apuros. Racionalizar, imagino que seja reduzir (continua o primado dos números), uma rede nacional através da coordenação regional. De instituições autónomas, potenciais nós de uma rede, viradas para o mundo, a instituições regionais e regionalizadas.

Proceder-se a uma densificação da figura jurídica do consórcio entre Instituições de Ensino Superior;

Será mesmo preciso? Talvez, não sei. Escasseiam as palavras. Não dizem o que se pretende resolver.

Criar a figura do Curso Superior de curta duração (120 ECTS) nas instituições de ensino politécnico, nível 5 ISCED com forte inserção regional e com interação obrigatória com as empresas;

Números e palavras. Ano e meio (atuais cursos de especialização tecnológica), dois anos, três anos (licenciaturas universitárias e politécnicas). A importância do nome. A importância do nível.

Assegurar a continuidade da política de ação social, tornando-a mais justa e eficiente, através da manutenção da atribuição de bolsas de estudo a estudantes economicamente carenciados com aproveitamento académico;

Palavras enredadas. Continuidade da política; mais justa e eficiente; através da manutenção. O que muda e o que permanece. Como se melhora mantendo?

Reforçar a atratividade das IES portuguesas para os estudantes estrangeiros, através da aprovação do estatuto do estudante internacional, fomentando a captação destes estudantes e facilitando o seu ingresso através de um regime específico;

Palavras em curso. Embora seja só para alguns estrangeiros, porque uns são mais que outro. Alianças e diplomacia assim o obrigam.

Reforçar a capacidade de gestão das IES, através da revisão do Regime Jurídico das IES, visando melhorar as condições de agilidade e flexibilidade da sua gestão.

Palavras que podiam ser para valer, não fosse a chuva de números e de instruções que provocam artrose nas instituições.

E por hoje acabaram-se as palavras.

domingo, 3 de novembro de 2013

O Estado consegue fazer melhor

Martim Avillez de Figueiredo escreveu, no Expresso de ontem, a propósito do guião para a reforma do Estado, apresentado pelo Governo, que "a irrelevância do seu conteúdo é a melhor demonstração da atual inutilidade do Estado. Não é ironia: se ao fim de um ano de trabalho o melhor que a equipa de Portas consegue fazer é isto, então é razoável não esperar muito mais da máquina pública."

Ao fazê-lo comete um erro crasso, pois confunde, desde logo, Governo com Estado.

Não sei como o documento foi elaborado, mas imagino que o tenha sido no recato de uns quantos gabinetes governamentais (quem sabe para impedir as habituais fugas de informação) e, em boa parte, por pessoas de passagem, mais ligadas à máquina partidária do que à máquina pública.

Já li muitos relatórios, participei na sua elaboração, coordenei alguns e revi uns quantos, ao longo de mais de duas décadas e em vários domínios de atuação. Sei como se faz. Sei os erros que se cometem. E sei que não é assim tão difícil fazer um documento, ainda por cima quando se pretende aberto para discussão; se, claro, se souber o que se quer discutir, para onde se quer caminhar, dentro de que limites. O que não deveria constituir um problema para quem se preparou para chegar ao poder, apresentou um programa de Governo, leva mais de dois anos em funções e conta com dois políticos de carreira. A menos que seja esse o problema: serem dois e de carreira.

Daí que talvez seja mais acertado o "lead" do referido artigo, e que diz assim: "O guião da reforma do Estado revela a ineficácia de quem o lidera". Ou seja do Governo, deste Governo. Não é pois o Estado que está em estado de inutilidade, mas o próprio Governo de quem, de facto, é razoável não esperar muito mais.

O Estado, ou pelo menos muitas partes do Estado, conseguem fazer melhor, muito melhor do que "isto". E em muito menos tempo. Valha-nos isso.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

A montanha e o rato

Depois dos cães e gatos da Ministra da Agricultura e de outras coisas, tivemos a montanha e o rato do Vice-Primeiro-Ministro. Como se costuma dizer: estamos entregues à bicharada.

Paulo Portas fez questão de se referir às 112 páginas do documento intitulado "Um Estado Melhor", como se um documento grande fizesse uma grande reforma. E o documento é grande apenas porque usa letra tamanho 16, generoso espaçamento entre linhas e amplas margens que dão para fazer anotações.Em formato de relatório normal não deve passar as 30; umas quantas a justificar o resgate, as consequeência do mesmo, o Tratado Orçamental, a diferença entre cortar e reformar (!), o que já feito, etc, etc. Retirando os lugares comuns, afirmações genéricas e pormenores fica pouco, muito pouco.

Não apresenta uma verdadeira reflexão sobre o papel do Estado, uma visão integrada, uma proposta sobre a sua intervenção em diversos setores. Pretende reduzir os trabalhadores em funções públicas, pagando-lhes melhor, mas não é claro sobre o que deixa de ser feito pelo Estado.

Muito pouco para o que o Governo pomposamente anunciou e reanunciou, e que agora tenta minimizar dizendo que as reformas têm estado a ser feitas. Muito pouco para justificar o atraso de um ano e os sucessivos adiamentos. Muito pouco para justificar uma conferência de imprensa de 45 minutos.

Amanhã entra-se mais a sério no orçamento e a montanha e o rato voltam às respetivas vidas.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Os objetivos do ensino superior

Assistimos a recorrentes conversas sobre o ensino superior e o que deve ser no futuro próximo. Conversas, porque feitas de palpites, de meras impressões e de ideias feitas. Conversas, porque análise ou discussão são coisas diferentes. Vale a pena ler e refletir sobre textos de outros contextos, e de outros tempos, em que, sendo o contexto relevante, não é o mais importante. Aqui ficam excertos sobre quatro objetivos do ensino superior:

We begin with instruction in skills suitable to play a part in the general division of labour. We put this first, not because we regard it as the most important, but because we think that it is sometimes ignored or undervalued. (...) And it must be recognised that in our own times, progress- and particularly the maintenance of a competitive position - dependes to a much greater extent than ever before on skills demanding special training.

Entre nós, o discurso da relevância para o mercado de trabalho, em abstrato, é sobrevalorizado, em particular porque não se discute "que" mercado de trabalho, nem se o modelo de formação adoptado (um primeiro ciclo de 3 anos) é o que melhor resposta oferece.

But secondly, while emphasising that there is no betrayal of values when institutions of higher education teach what will be of some pratical use, we must postulate that what is taught should be taught in such a way as to promote the general powers of the mind. The aim should be to produce not mere specialists but rater cultivated men and women.

Foco ou abrangência. Formação utilitária ou formação útil. Uma vez mais duração e conteúdo da formação em questão.

Thirdly, we must name the advancement of learning. There are controversial issues here concerning the balance between teaching and research in the various institutions of higgher education and the distribution of research between these institutions and other bodies. (...) But the search for truth is an essential function of institutions of higher education and the process of education is itself most vital when it partakes of the nature of discovery.

Ensino e investigação. Investigação como metodologia de ensino, de desenvolvimento de maneiras de pensar e de agir, de formação que fica.

Finally there is a function that it is more difficult to describe concisely, but that is none the less fundamental: the transmission of a common culture and common standards of citizenship. By this we do not mean the forcing of all individuality into a common mould: that would be the negation of higher education as we conceive it.

Cidadania. Participação. Atitudes.

Excertos do que é conhecido como Relatório Robbins, do nome de Lord Robbins, coordenador de uma comissão nomeada pelo Primeiro Ministro inglês Harold MacMillan, e que foi apresentado em 1963, faz agora 50 anos.

Relatório e outros documentos disponíveis no sítio Education in England (http://www.educationengland.org.uk/index.html).

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

2015, o ano que se segue

Esticando o olhar, para lá do dia de amanhã, para lá da medida A ou do plano B, das contas de remediação, sobrevivência ou desespero, chega-se a um novo ano, ainda sem medidas mas já com outra contas.

O Relatório do Orçamento de Estado para 2014, abre a porta para esse ano que se segue, 2015. Fá-lo através do Quadro Plurianual de Programação Orçamental, que "estabelece os limites de despesa financiada por receitas gerais". Não apresenta medida mas valores por programa (para 2014), por agrupamento de programas (para 2015) e valores totais (para 2016 e 2017).

Para 2015, a despesa com o agrupamento "social" (saúde, ensino, ciência, emprego e segurança social) será reduzida em 360 milhões de euros. Seria bom se tal significasse menos necessidade de despesa nestas áreas. Mas não será, certamente, o caso.

Redução que será ultrapassada pelo acréscimo da despesa com o agrupamento "económico" (finanças e administração pública, gestão da dívida pública, economia, ambiente, território, energia, agricultura e mar), e que ultrapassa os 370 milhões de euros.

Civilização de especialistas

Dos especialistas, mestres das visões profundas mas fragmentadas;
Dos líderes e da natureza da liderança, como forma de dar sentido ao conjunto;
Dos riscos de ser político e dos defeitos no exercício da política.

"A verdade é que hoje vivemos numa civilização de especialistas e que é vão todo o empenho de que seja de outro modo. (...) O preço, porém, se tem naturalmente de pagar; paga-o o colectivo quando se queixa, e muito justamente, da falta de bons líderes, de homens com uma larga visão de conjunto, que saibam do trabaho de cada um o suficiente para o poderem dirigir e se tenham eles tornado especialistas na difícil arte de não ter especialidade própria senão essa mesma do plano, da previsão e do animar na batalha as tropas que, na maior parte das vezes, mal sabem por que se batem; paga-o o indivíduo quando, no cumprimento de uma missão fundamental para os destinos do mundo, se arrisca a ser político e sofre todos os habituais ataques dos especialistas de um ou outro campo que não se lembram de que o defeito para o político não é o de não ser técnico, mas o de não ouvir os técnicos e não lhes dar em troca, a eles, o sentido largamente humano que tantas vezes lhes falta. E, mais grave, paga-o de um modo geral a própria natureza humana, que, embora gostosamente embalando a sua preguiça nas delícias do especialismo, sente ainda, mais fundo e constante, o remorso de o ser."

Agostinho da Silva, Só Ajustamentos (1962) em "Citações e Pensamentos de Agostinho da Silva".

domingo, 13 de outubro de 2013

Manipulação de expetativas

Teoria alternativa para o "choque de expetativas", em poucos "Passos".

Um: causar o máximo alarme prevenindo para o "choque de expetativas" que o orçamento vai gerar, desinquietando assim o povo e os comentadores que ampliam logo o efeito pretendido. Gera-se assim a convicção de que o orçamento, que já se suponha duro, vai ser ainda pior que duro. Para dar maior credibilidade é o próprio Primeiro-Ministro, que garante estarmos no caminho certo, que protagoniza esta fase.

Dois: reforçar o efeito da Fase Um através de uma "fuga de informação" parcial, sobre uma medida de efeito marginal mas com contornos sociais facilmente exploráveis. Os tristes deputados que temos passam uma semana a discutir algo que alguém está a preparar, mas que ninguém sabe, em concreto, de que se trata. Os jornalistas e os comentadores, salvo algumas exceções, ajudam à festa, explorando o diz que disse, a reação ao que foi dito, a suposição, os cálculos, a entrevista aos potenciais afetados e os dramas que certamente se seguirão.

Três: dar a boa notícia. O outro Primeiro-Ministro, que era o n.º 3 antes do golpe de Verão e que agora é designado como Vice-Primeiro-Ministro, explica que foram "os maus" que assustaram as pessoas e lançaram a confusão, e que a medida em causa foi, como é óbvio, cuidadosamente pensada para proteger quem precisa de ser protegido, com a enorme consciência social de que só este Governo (ou a parte que ele próprio representa) é capaz, só afetando, afinal, 25.000 "ricos".

Quatro: para não deixar dúvidas sobre quem manda verdadeiramente no Governo tem, de um lado, a Ministra das Finanças que levou ao conhecido ato que foi temporariamente irrevogável, e do outro um dos seus Ministros.

Quinto: esta "emergência comunicacional" teve de ser cuidadosamente desmontada pelo próprio, justificando assim uma conferência de imprensa, com crescentes expetativas (as tais) à medida que ia sendo adiada, e onde repetiu e reptiu a mensagem, para que se perceba bem e para estar mais tempo no écran.

Resultado: pouco se falou de todas as outras medidas e não se explicou, de modo coerente, o que aí vem. Objetivo cumprido!

Uma pergunta para quem duvida destas teorias da conspiração: alguém foi demitido por uma fuga de informação (como outras) tão "prejudicial" ao Governo?

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Choque de expetativas

Sr. Primeiro-Ministro, já que fala nisso, solicito-lhe encarecidamente que deixe as minhas expetativas em paz. São minhas e não lhe passei nenhuma procuração para o efeito. São minhas e estou plenamente convencido que estou melhor habilitado para as gerir do que V. Ex.ª. Não se preocupe com as colisões que elas possam sofrer: não sendo masoquista procedo a frequentes "ajustamentos", normalmente em baixa, ainda que num quadro de otimismo realista, o que desde logo minimiza os inevitáveis danos colaterais. Estou preparado para que a retoma das expetativas possa ocorrer a qualquer momento, com uma taxa de crescimento acelerada e inequivocamente sustentável. As condições de sucesso estão identificadas: falar verdade e falar claro. Quer ajudar?
Publicado nas "Cartas ao Diretor", Jornal Público, 10 de outubro de 2013.

sábado, 28 de setembro de 2013

Colocar em perspetiva

Notas no Click de 28 de setembro, Antena 1 (áudio em http://www.rtp.pt/play/p384/e129892/click).

Estamos imersos em informação, números, estatísticas. Compara-se a área ardida neste verão com a do ano passado. A atividade económica mede-se trimestre a trimestre; os dados do desemprego mês a mês. Em cada semana antecipa-se a variação do preço dos combustíveis. As bolsas vivem do dia a dia, do intra-dia ou dos futuros que estão a chegar, e as decisões são tomadas por algoritmos a velocidades que já não são humanas.

Esta superabundância de informação gera uma perceção da realidade cada vez mais baseada no imediato, e uma enorme pressão para reagir instantaneamente – em tempo real, diz-se, como se os outros tempos fossem menos reais. A perspetiva de conjunto, a reflexão e a compreensão perdem terreno para o quanto, agora e já.

Este ano houve menos candidatos ao ensino superior público. Reclama-se, em consequência, a reorganização da rede de instituições: é preciso reduzir, concentrar, talvez fundir. Há quem diga mesmo que 4 ou 5 universidades seriam suficientes. Isto apesar da fusão de duas universidades em Lisboa não ter por objetivo reduzir custos, nem sequer reorganizar a oferta de cursos; mas tão somente aumentar dimensão e promover interdisciplinaridade.

Ganhemos alguma distância. Em 1990 eram cerca de 95 000 os estudantes que frequentavam as universidades públicas. Em cerca de 20 anos o número duplicou, aproximando-se dos 200 000. As universidades, que contribuíram para esta massificação do ensino superior, são exatamente as mesmas que hoje existem: não foram criadas quaisquer outras nos últimos 25 anos. O eventual excesso de oferta não resulta, por isso, de uma proliferação desregrada de universidades. Nem sequer significa que já não seja preciso formar tantos portugueses. Na realidade Portugal continua a apresentar níveis de formação da população inferiores à maioria dos países com quem se compara e à meta que para si traçou.

Olhar para o passado não é o mesmo que viver o presente, ou que imaginar o futuro. Mas deve fazer parte da reflexão necessária, sobretudo quando se fala de instituições, ou de sistemas, que demoram décadas a afirmar-se, mas que podem definhar em poucos anos. Precisamos transformar informação em conhecimento, reduzindo o ruído, para melhor decidir. Por maioria de razão quando o tema é o próprio ensino superior.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

E a Grécia aqui tão perto ...

Do que se passa na Grécia pouco nos chega. O passado recente parece ter sido empurrado para um buraco escuro, onde convivem resgates, austeridade, perdões de dívida, fantasmas de saída do euro e de contágio europeu, imagens de manifestações e de caos em praças, reportagens sobre vidas em ruínas.

A comunicação já há muito abandonou os gregos. O tempo lento da recuperação, da estagnação ou do colapso não serve. Não nos serve, a nós, consumidores da comunicação.

Os políticos portugueses preferem, ainda que em discursos vagos, uma Irlanda de mares frios, restos de miragens anglo-saxónicas, a uma Grécia mediterrânica, renegando uma história com mais em comum. Renegando mesmo a simples menção a um país e a um povo, com medo que a palavra atraia a mesma desgraça.

Que lições se tiram afinal do "caso" grego? Assunto esquecido. Assunto perdido.
E os gregos, europeus mas gregos? Vivem. Sobrevivem. Longe dos nossos olhares.

Hoje ecoam notícias da Grécia. As Universidades estão a parar. Segundo o Guardian há já casos em Atenas, Salónica, Patras, Ioannina, Creta (http://www.theguardian.com/world/2013/sep/25/austerity-measures-push-greek-universities-collapse). Falta pessoal na administração. Resultado de quatro anos de crise que serviram para erodir barreiras constitucionais. Resultado dos expedientes que antecedem o despedimento. Resultado de um programa de mobilidade que se destina a imobilizar pessoas. Linguagens orwellianas que cá adoptam estas e outras formas: requalificação, ajustamento, mudança de paradigma.

Não se reforma. Não se escolhe. Vai-se cortando e recortando. Em tudo e em todo o lado. Para lá do aceitável. Para lá do recuperável.

Tudo soa familiar, demasiado familiar.
Os anos passam e a Grécia aqui tão perto, ao virar da esquina, ao virar do ano que aí vem.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

CCquê?

CCES - Conselho Coordenador do Ensino Superior.
Já ouviu falar?
Não?
É natural.
Não funciona!

A reorganização da rede (de instituições e ou de cursos) de ensino superior voltou a ser notícia, a propósito dos resultados da 1ª fase do concurso nacional de acesso ao ensino superior público. E com ela regressou à agenda o relatório Portuguese Higher Education: a view from the outside, elaborado pela European University Association (EUA), em fevereiro de 2013. Este documento (http://www.eua.be/Libraries/Publication/CRUP_final_pdf.sflb.ashx) contém 43 recomendações, das quais nada menos que 16 (!) mencionam o CCES.

O CCES consta do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), que, pela mão do Ministro Mariano Gago, entrou em vigor em 2009. O Ministro Nuno Crato concordará com o CCES, uma vez que, nas numerosas alterações ao RJIES, que recentemente propôs, nada modificou nesta matéria (http://www.snesup.pt/htmls/EFZuVAVpyFqRSUNLbi.shtml). Prevê-se portanto a manutenção de um CCES com missão de aconselhamento, no domínio da política de ensino superior, do membro do Governo responsável por esta área.

Mas a equipa da EUA atribui-lhe, no entanto, um papel mais decisivo, com um formato diferente e funções acrescidas: a elaboração de uma estratégia nacional para o ensino superior; a aprovação das estratégias de cada instituição, para garantir a articulação com o todo nacional e comas políticas de desenvolvimento regional; a ligação entre estratégias e contratos de financiamento de base plurianual.

Uma questão que recebeu pouco eco, desde fevereiro de 2013. Talvez por ser mais complexa do simples cortes, fechos ou fusões. Talvez por implicar uma discussão de, pelo menos médio prazo, que se reclama mas em simultâneo se evita. Talvez por estar fora dos ciclos políticos. Talvez por implicar uma drástica alteração de poderes.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

3 perguntas autárquicas

Não gosto de campanhas feitas de ruído.
Não gosto de campanhas feitas para manipular.
Não gosto de campanhas feitas para formar rebanhos.
Não gosto de campanhas feitas de papéis e plásticos para deitar fora.
Não há espaço nas "nossas" campanhas para esclarecer.

Neste período de campanha aberta a que se convencionou chamar pré-campanha, e à atenção dos candidatos, eis o que gostava de saber:

1 - Qual a situação financeira da Câmara Municipal?
2 - O que se propõe fazer quanto a isso?
3 - Quais as principais iniciativas que propõe sem gasto de dinheiros públicos?

[mensagem de reprodução livre, para uso à discrição, em conversa com candidatos, nas redes sociais, nas páginas dos ditos, onde acharem conveniente]

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

38º à distância de um botão

Os sinais são de calor, de muito calor. O ar brilha, atravessado por um sol que desce, vagarosamente. O céu mais branco que azul. A terra de um amarelo que secou, diferente do amarelo que torrou e do amarelo ainda húmido. As colinas começam a arredondar as sombras, pequenas. São seis e meia da tarde. A mente lê os sinais e confirma: deve estar calor, muito calor. Os olhos pousam nos dígitos, por um instante, e confirmam o que a mente lê. Muito calor. 38.º à sombra. Quem sabe quantos mais fora dela. Só a pele teima em dizer que está fresco.

Noutro tempo a travessia teria horas ajustadas em função do sol, das refeições, da distância feita de estradas mais lentas; panos pendurados nas janelas para enganar o sol que atravessa o vidro.

Mas hoje o objetivo é o destino e não a viagem; a rapidez e não o vagar; tragar caminho em vez de o saborear; não sentir a terra, as terras, a paisagem, as gentes. Tanto podia estar aqui como noutro lugar, em muitos lugares. Os sinais podiam ser de frio, de muito frio, ou de chuva, muita chuva. A mente e a pele continuariam a discordar, sem que isso importasse.

Uma breve paragem. O corpo sai e, por um momento, um único momento, a pele concorda com os olhos e com a mente. Está calor, muito calor. Mas logo reentra. 38.º do lado de fora. Mantidos de fora por um botão que o dedo já pressiona.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

O mar, ali.

Gosto de ouvir o mar, à noite, mesmo sem entender o que diz;
E de acordar sabendo que está ali.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

A mudança das estações

Depois da retração económica por causa da chuva, segundo um ex-ministro, e do episódio Borda d'Água que se lhe seguiu na Assembleia da República, e que fez rir até às lágrimas outro ex-ministro, eis que João Semedo, coordenador do Bloco de Esquerda, decreta a alteração das estações: a descida do desemprego no 2.º trimestre (abril a junho) é causada pelo Verão, que dantes começava em finais de junho e ia até finais de setembro.

Alterações climáticas à parte, é fácil concluir que, como tantos outros políticos, João Semedo não resistiu a comentar em direto algo que provavelmente não tinha lido. Mais do que isso, tentou que a realidade se moldasse à sua visão: a de que todos os dados do País têm que piorar constantemente, consquência lógica, inelutável, uma vez o Governo está entregue à direita liberal. Quanto pior melhor, porque tal comprovará a tese. E assim concluiu que a baixa na taxa de desemprego é apenas uma pequena variação sazonal devido ao aumento de emprego em época de veraneio.

Ora como qualquer dirigente partidário com a rodagem de João Semedo sabe, existem ferramentas para lidar com fenómenos que variam sazonalmente, como sejam comparações em períodos homólogos e análises de séries longas de dados.

O INE revelou informação substancial e explicada, para quem se quiser dar ao trabalho de tentar compreender a realidade real. Eis alguns dados que constam da ficha disponível em www.ine.pt:

- em termos homólogos, ou seja, comparando segundos trimestres, a taxa de desemprego em 2013 é superior à de 2012;
- já em termos sequenciais, comparando o 2.º trimestre de 2013 com o 1.º, a taxa de desemprego baixou em 1,3%;
- esta é a primeira diminuição na taxa de desemprego desde o 2.º trimestre de 2011;
- é verdade que os segundos trimestres têm apresentado, nos últimos dois anos, os melhores comportamentos no ciclo anual: uma ligeira redução em 2011 e uma estagnação em 2012; nada que se compare a uma redução superior a 1%.

Nada disto permite concluir sobre as causas de fundo destas variações e, consequentemente, sobre a possível continuidade da redução da taxa de desemprego. Mas são factos. E um aumento de 72 400 pessoas na população empregada é, em si, uma boa notícia! Que o digam os próprios, os familiares, nós e, supõe-se, os políticos de todas as cores.

Podia João Semedo ter recorrido a outras estatísticas, também divulgadas pelo INE, e que apontam uma evolução negativa do volume de negócios na indústria, quer em termos homólogos quer em termos sequenciais, quer nas vendas destinadas ao mercado externo quer nas vendas no mercado interno. Podia ter invocado os riscos e as medidas que serão inscritas no orçamento para 2014. Poder, podia, e devia, em vez de recusar a realidade.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Destruição maciça

Tempo menos 68 anos - 5 de agosto de 1945.

Central Park, Nova Iorque, EUA - final de mais uma tarde de Verão.

É 6 de agosto em Hiroshima, Japão - uma nova manhã de guerra.

08h15 - Um pequeno gesto de um homem, um inferno para milhares...

"Entretanto, decorria preparativos para a largada da bomba atómica no Japão. No dia 24 de Julho, Truman revelou que tinha dado instruções: «para que ela seja usada de modo a que o alvo sejam objectivos militares, soldados e marinheiros, e não mulheres e crianças». E prosseguiu, explicando: «Embora os japoneses sejam selvagens, cruéis, impiedosos e fanáticos, nós, que lideramos o mundo na promoção do bem comum, não podemos largar esta bomba terrível sobre a velha capital nem sobre a nova.» O alvo seria «puramente militar». Truman acrescentou: «Emitiremos uma declaração de aviso pedindo aos japoneses que se rendam e poupem vidas.» O primeiro alvo escolhido foi Hiroxima, em que as mulheres e crianças eram de facto em muito maior número do que os soldados e marinheiros. E não foi emitido qualquer aviso. Às primeiras horas de 6 de Agosto, um bombardeiro B-29 especialmente adaptado, o Enola Gay, largou uma bomba atómica. Foi detonada a 575 metros do solo. Nunca uma só deflagração tinha matado tanta gente. Em menos de duas semanas, o número de mortes chegava a 92233. Muitas mais pessoas morreram nos anos seguintes, vítimas dos efeitos da radiação; em 1986 o monumento aos mortos de Hiroxima enumerava 138890 vítimas."

Em História do Século XX, de Martin Gilbert.

terça-feira, 23 de julho de 2013

O PM dissimulado

Paulo Portas tinha razão quando afirmou que a sua permanência no Governo seria um ato de dissimulação. Palavras cuidadosamente escolhidas por um político, e escritas para serem divulgadas.  remodelação hoje anunciada parece confirmá-lo: passa a ser Primeiro-Ministro, dissimulado de Vice-Primeiro-Ministro, num Governo em que o PSD se coligou com o CDS-PP. Senão vejamos, de acordo com as informações que circulam o VPM (sigla quase inversa de MVP - most valuable player, em que "player" faz todo o sentido) terá a seu cargo, além do que significa ser vice, as relações com a troika, a reforma do estado e a coordenação da área económica. Contará com António Pires da Lima na Economia, Assunção Cristas na Agricultura e Mar e Pedro Mota Soares na Solidariedade, Emprego e Segurança Social. Afinal as todas as pastas relacionadas com a atividade económica e que, dizem, são decisivas para o anunciado novo ciclo. E trata-se de facto de um novo ciclo, e de um novo Governo, liderado pelo CDS-PP, pelo que se justifica plenamente a apresentação de um novo programa e de uma moção de confiança, como o Presidente da República fez questão de informar. A menos que tudo continue a depender das Finanças... Em todo o caso, não sobra muito para Pedro Passos Coelho. Esperemos pois pelo novo programa, não sufragado, do governo dissimulado. 

sábado, 20 de julho de 2013

Desemprego e vagas: ligações perigosas.

Emissão do Click de 20 de julho, na Antena 1 (http://www.rtp.pt/play/p384/e123922/click).

A fixação de vagas para acesso ao Ensino Superior contou, este ano, com uma nova regra: o Governo impos uma redução de vagas para os cursos em que o número de inscritos nos centros de emprego é superior à média nacional, quando considerados os últimos 5 anos e o número de diplomados.

Esta relação emprego / vagas é, à primeira vista, atrativa; transmite uma mensagem simples, e confortável, de adequação entre formação e perspetiva de emprego. Mas, ao contrário do que possa parecer, não só não é razoável, uma vez que os níveis de emprego são condicionados por inúmeros factores, como não representa uma visão de futuro. Diria mesmo: é passado, é fechado, é negativo e é errado.

Passado porque um elevado desemprego nos últimos 5 anos, num período que se inicia, portanto, em 2008, e para o qual nem sequer são analisadas as tendências de evolução, nada nos diz sobre o futuro; sobre um futuro que, para os atuais candidatos se pode situar apenas em 2018-2020, altura em que provavelmente estarão a entrar no mercado de trabalho, como mestres.

Fechado porque traduz um olhar confinado, que não vê para lá das nossas extintas fronteiras. Considerando que apenas devemos formar para o emprego que o País oferece, em cada momento. Ignorando que o mundo mudou e que as pessoas e os empregos têm uma elevada mobilidade. Esquecendo que a globalização é uma via com dois sentidos. E que temos a obrigação de dar as melhores oportunidades a cada estudante. Isto independentemente do percurso que venham a seguir, em Portugal ou no Mundo, e que pode mesmo vir a ser semelhante ao de muitos desportistas, artistas ou gestores de eleição, que nos habituámos a referir, não como fuga de talentos, mas como casos de sucesso e de afirmação nacional. 

Negativo porque o critério utilizado é o desemprego e não o emprego; a falta de atividade e não o percurso de trabalho, esse sim, mais revelador sobre a valia da formação; ataca-se um sintoma sem atender à condição geral; liga-se à circunstância e não à estrutura.

E, por último, errado, porque induz a subordinação da formação ao emprego imediato.

"Se uma pessoa domina os fundamentos da sua disciplina e aprendeu a pensar e a trabalhar de forma independente, acabará certamente por encontrar o seu caminho, além de que terá mais facilidade em adaptar-se ao progresso e às mudanças do que uma pessoa cujo treino consistiu principalmente na aquisição de conhecimentos circunstanciais.". Quem o disse foi Albert Einstein.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

O que ouvi o Presidente dizer

Não aprecio particularmente as intervenções deste Presidente, quer quanto ao conteúdo, quer quanto à forma. Desta vez parece-me ter sido particularmente claro quanto à maioria dos aspetos, embora sem o dizer, em todos os casos, de forma explícita:

1) Considerou que a crise política da semana passada foi grave e inesperada, com efeitos imediatos e indesejados na envolvente do País. Sem o referir, é sabido que a crise foi causada pelo próprio Governo.

2) Por isso, e noutras condições, o Presidente convocaria eleições antecipadas. Por esse facto nunca referiu a solução que terá sido apresentada pelo Primeiro-Ministro, as promessas do PSD e do CDS, ou a existência de uma maioria parlamentar que continuaria a suportar o Governo, o que é uma alteração política muito significativa. Ao invés, explicou longamente, e de forma detalhada, os riscos e prejuízos imediatos de convocar eleições antecipadas neste momento, justificando a necessidade de procurar uma outra solução.

3) Na mesma linha de raciocínio, independemente da maioria parlamentar e do eventual sucesso do programa de assistência, anunciou, desde já, que o atual ciclo político não deveria chegar ao fim natual e que, em 2014, deveríamos ter eleições. Mais claro não é possível ser.

4) O Presidente considera que é necessário um acordo a três: PSD, PS e CDS. Acordo que, tendo em conta as declarações até agora efetuadas, será improvável. Para o efeito propôs, se necessário, a atuação de um mediador.

5) O Presidente afirma que há outras alternativas constitucionais, ou seja, que a alternativa que já lhe foi apresentada não serve; e que poderá recorrer a elas se não existir o entendimento que propõe. Um Governo de iniciativa presidencial, comprometendo os partidos a uma solução que considera ser a única? Solicitar ao PSD outro Primeiro-Ministro, capaz de fazer as pontes com o PS e CDS?

As reações iniciais destes três partidos mostram claramente que não perceberam, e que cada um tenta descobrir algo que não foi dito pelo Presidente e que esteja de acordo com as suas posições.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Boas notícias, finalmente !

Estes últimos 10 dias estão cheios de boas notícias; boas notícias sobre Portugal e o seu futuro.

Apesar de não sabermos sequer se temos um governo, meio governo, desgoverno ou que governo, o País, o País verdadeiro, aquele que está longe das cúpulas, dos telefonemas ansiososos, dos holofotes e dos comentadores, continua a funcionar. As instituições não colapsaram, as pessoas não ficaram prostradas, as empresas não fecharam. Há vida para além do Governo.

Uma semana depois da queda abrupta das bolsas, provocada pelos que professam a magna importância da estabilidade, ei-las que, viçosas, já recuperaram das perdas. Os fundamentais das empresas e da economia não foram afetados, o balanço global não é negativo e apenas o dinheiro mudou de mão, muito dinheiro. De entre gestores do risco, apostadores ocasionais ou compulsivos, manipuladores e gente que simplesmente se assustou, ou foi assustada, ganharam uns e perderam outros. O País não notou.

Os juros da dívida subiram e estes, ao contrário de outros objetos, sobem sempre mais depressa do que descem. Mas este perigo apenas se concretiza quando se vai ao mercado e, como já nos disseram, temos o financiamento deste ano assegurado. São apenas um indicador que pode ser gerido, calmamente, durante mais uns meses. Há tempos distintos.

Parece que eleições seriam sinónimo de desastre; apesar de, no essencial, nada irem mudar porque, dizem-nos, qualquer governo terá que seguir a mesma cartilha. Ora os mercados, inteligentes, sabem que a solução é quase única, pelo que, afinal, não há razões para alarme. As eleições poderiam até ter o efeito positivo da escolha, das escolhas individuais e coletivas; e legitimariam um governo para mais quatro anos - estabilidade q.b. - que tanto podia integrar um ou mais partidos, em várias combinações.

Só falta a economia crescer, mas estamos no bom caminho!

domingo, 7 de julho de 2013

A epístola de Paulo aos Lusitanos

O exame de acesso, na sua componente de português, filosofia, física, lógica e comportamento, versa a Epístola de Paulo aos Lusitanos, escrita no ano da graça de 2013 d.c., 39.º na era d.a. (depois de abril), e acontecimentos associados.

1. Examine a frase "Com a apresentação do pedido de demissão, que é irrevogável, obedeço à minha consciência e mais não posso fazer."
a) Defina "irrevogável";
b) Qual o facto irrevogável: a demissão, o pedido ou a apresentação do pedido de demissão?
c) Os pedidos podem ser recusados; o que sucede, então, aos pedidos irrevogáveis?

2. Elabore uma composição, com base no texto apresentado e utilizando uma das seguintes opções:
a) O grilo falante de Pinóquio, como imagem da consciência;
b) Um ou mais dos seguintes heterónimos: o agricultor, o reformado, o das feiras, o mercador internacional, o pregador;
c) Pedro e o Lobo, inserindo as várias personagens da história, incluindo o rebanho e os aldeões;

3. Discuta o papel da consciência ao longo dos diversos acontecimentos dos últimos dois anos, refletindo designadamente, sobre a sua eventual omnipresença ou frequente ausência.

4. Recorrendo à teoria da relatividade política escolha, e justifique, qual a opção que melhor descreve a duração de uma decisão irregovável:
a) Infinita;
b) Um bocado de tempo considerável;
c) Um piscar de olhos (podendo ser de um ou de ambos os olhos em simultâneo);
d) O tempo durante o qual permanecem constantes as condições existentes no momento da decisão;
e) De acordo com a referida teoria o tempo não existe.

5. Considere as seguintes expressões de ordem e relação:
- O n.º 1 definiu os outros números e a sua ordem;
- O n.º 3 julgava que era o n.º 2 até que o n.º 1 lhe disse que não era assim;
- Segundo alguns o n.º 2 era, afinal, o n.º 1, desconhecendo-se que n.º era o n.º 1;
- O n.º 2 saiu;
- O n.º 3 passou a n.º 2;
- O n.º 2 saiu (outra vez?), depois de ter julgado que era n.º 2, ter sido informado pelo n.º 1 (qual deles?) que era n.º 3, e de ter sido promovido a n.º 2 pela saída do então n.º 2;
- Isto está a ficar mais difícil: o 2.º n.º 2 que saiu voltou e passou a ser n.º 1b);
- O n.º 1b) alterou a ordem de outros números, passou alguns a 0 e introduziu outros no conjunto;
Quem é afinal o n.º 1?

6. Examine a frase "Em consequência [da confirmação da escolha da Ministra das Finanças], e tendo em atenção a importância decisiva do Ministro das Finanças, ficar no Governo seria um ato de dissimulação. Não é politicamente sustentável, nem é pessoalmente exigível."
a) Escolha a melhor pasta para um ministro dissimulado: Ministro sem pasta?
b) O que se deduz sobre a posição da consciência referida na questão 1?
c) Há um limite de decência para a insustentável leveza da política?

terça-feira, 2 de julho de 2013

Encontrar a solução

Saber que se está perante um problema, e é necessário encontrar uma solução, é bem mais fácil do que descobrir se se está perante um problema.

Quem gosta de resolver problemas de xadrez sabe isso muito bem: procurar um mate em 3 jogadas leva a reduzir drasticamente os movimentos possíveis, ainda que alguns possam ser muito improváveis à partida. Numa dada posição saber qual dos lados pode ganhar é uma tarefa totalmente diferente.

Ou, nas palavras de um dos maiores Grandes Mestres de todos os tempos:

What would intimidate you more, being told, 'Solve this problem', or being told, 'Find out if there's a problem?' Solving problems could almost be described as easy compared to figuring out whether we have a problem in the first place. It's hard to say we're lucky when we face a crisis, but knowing that action is called for is reassuring. The truest tests of skill and intuition come when everything looks quiet and we aren't sure what to do, or if we do anything at all.
...
Knowing there is a solution to find is a huge advantage; it's like not having a 'none of the above' option. Anyone with reasonable competence and adequate resources can solve a puzzle when it is presented in such a way. We can skip the subtle evaluations and move directly to plugging in possible solutions until we hit upon a promising one. Uncertainty is far more challenging.

Garry Kasparov, em "How life imitates chess"

quinta-feira, 27 de junho de 2013

A derrota da invencível armada

A armada invencível foi ... derrotada, e se bem que espanhola era também ... portuguesa, tendo zarpado de Lisboa sob o comando do Duque de Medina-Sidónia, ao leme do São Martinho, galeão da marinha nacional.

"Das 200 velas enviadas, apenas cinquenta e três regressaram à Espanha. O sonho da conquista da Inglaterra protestante terminava assim com uma incrível derrota para a Espanha. Mas esta derrota não se confinou à Espanha, pois constituiu para Portugal um grave desaire. Muitos dos navios da armada eram portugueses, bem como grande número de soldados e marinheiros nela incorporados. Portugal sofria assim os efeitos desastrosos de uma catástrofe que não havia provocado."

Em "Grande dicionário enciclopédico ediclube".

domingo, 23 de junho de 2013

Desintoxicação, precisa-se!

O Jornal de Negócios noticiou, ontem, que o Governo "está a preparar uma proposta de lei prevendo benefícios fiscais para as empresas que empreguem doutorados e mantenham no país cientistas nacionais."

Há pouco mais de um ano, a Assembleia da República recomedou ao Governo que adotasse um conjunto de medidas para estimular o empreendedorismo jovem (recomendação 58/2012 de 30 de março), com 21 pontos onde se inclui:
- linhas de crédito bonificadas;
- a valorização do papel desempenhado pelos business angels, criando incentivos...;
- o estímulo a uma bolsa de tutores que acompanhem as iniciativas, de forma gratuita...;
- a afetação de recitas próprias das instituições de ensino superior (!) para apoio a spin-offs;
- a criação de uma bolsa de empreendedores a nível europeu;
- uma plataforma de partilhas de ideias e projetos;
- a promoção de políticas municipais neste domínio;

E em muitas outras áreas, como nestas, reclama-se sempre mais um estímulo. Para determinadas empresas fará todo o sentido empregar doutorados; será uma questão estratégica mesmo ou até de sobrevivência. Mas sem estímulo ...

Empreender - fazer - tem um risco; mas há quem acredite que possa eliminar o risco e criar, sem dor, o novo Homo imprenditoris: treinado desde o ensino básico ao superior, através de cursos variado cobirndo todas as fases possíveis e imaginárias do processo, ações de atualização, linhas de financiamento, bolsas, incubadoras e toda uma parafernália de instrumentos. O novo jovem Empreendedor pode passar a vida, dos 10 aos 25 anos, ou aos 30, ou aos 35, ou a qualquer outra idade, sem nunca ter estado verdadeiramente só ...

O estímulo é (quase) tudo! Para exportar e para importar; para semear e para colher; para fazer mais projetos; para escolher o mar, o espaço ou as profundezas da terra; para investir nas cidades ou no rural; para andar ou para estar parado.

O corpo - os corpos, singulares ou corporativos - estão dependentes do eterno estímulo, e vivem em ressaca quando ele cessa; e assim ficam, entre a prostração e a irritação, até à chegada da droga de última geração, vinda da Europa, de África ou da Ásia.

Desintoxicação, precisa-se!

domingo, 16 de junho de 2013

Os transformers

Há menos de um ano, em O regresso dos mutantes, abordava uma decisão do Conselho de Ministros relativa à transformação de instituições universitárias em instituições de ensino superior politécnico, medida apresentada sem detalhe, sem qualquer explicação, e que passou relativamente desapercebida (http://notasdasuperficie.blogspot.pt/2012/09/o-regresso-dos-mutantes.html).

O diploma correspondente, Decreto-Lei 251/2012, foi aprovado em novembro e tem um único artigo: "As instituições de natureza universitária que pretendam assumir natureza politécnica dispõem do prazo de 18 meses, contados a partir da data de entrada em vigor do presente decreto-lei, para a adequação aos requisitos estabelecidos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 49.º da Lei n.º 62/2007, de 10 de setembro". Ou seja, apenas se define um prazo para adaptação aos requisitos estabelecidos para o corpo docente dos politécnicos.

Pouco tempo depois, a 3 de janeiro, o Conselho de Ministros aprovou um diploma que reconhece o interesse público do Instituto Superior de Comunicação Empresarial (ISCEM), até então escola universitária não integrada, enquanto estabelecimento de ensino politécnico. Nele se referia, entre outros, o facto da Agência de Acreditação e Avaliação, ter acreditado cursos do ISCEM como ciclos de estudo do ensino politécnico, ainda em outubro de 2012.

Esta semana ocorreram mais três transformações:

1) o ISLA - Instituto Superior de Gestão e Administração de Santarém, politécnico, sucede ao Instituto Superior de Línguas e Administração de Santarém, universitário.

2) a Escola Superior de Tecnologia e Gestão Jean Piaget do Litoral Alentejano, politécnico, sucede ao Instituto Superior de Estudos Interculturais e Transdisciplinares - Santo André, universitário.

3) a Universidade Europeia, universidade, sucede ao Instituto Superior de Línguas e Administração de Lisboa, estabelecimento de ensino superior universitário.

Numa altura em que tanto se fala de racionalização - diminuição - da rede de ensino superior, bem como do "aprofundamento" da natureza binária do sistema, já para não falar de "transparência e diálogo" seria muito interessante conhecer as razões subjacentes a estes "ajustamentos".

O ensino praticado seria de índole politécnico e portanto tratou-se de uma correção? Ou os ciclos de estudo politécnico a ministrar são, de facto, substancialmente diferentes dos universitários, anteriormente ministrados? A alteração terá a ver com a composição do corpo docente? Será uma despromoção num sistema, afinal e sempre, estratificado? Ou ...?

E, já agora, em fase de dúvidas, qual é o enquadramento disto tudo no Regime Jurídico em vigor?

sábado, 8 de junho de 2013

Da Autonomia

Emissão de hoje do Click, na Antena 1.

A autonomia universitária parece ser um daqueles temas que reúne consenso: maior autonomia significa um ensino e investigação mais livres de interesses políticos ou económicos; os estudos relacionam-na com um melhor desempenho das instituições; os partidos políticos fazem a sua apologia; os Governos afirmam a intenção de a reforçar; e a Constituição consagra-a.

Contudo este é um consenso aparente, em redor de um termo abrangente e com múltiplas facetas, e que não resiste a uma observação mais próxima.

Desde logo no seio dos próprios Governos, em que a autonomia universitária parece ser um campo de batalha entre a tutela do ensino superior e o Ministério das Finanças. Foi assim, em parte, com a criação do modelo fundacional, que permitiria salvaguardar as universidades de cativações e de outras restrições impostas à gestão na esfera pública. Será assim em cada discussão do Orçamento de Estado. Deveria ter sido assim, aqui por maioria de razão, quando, em abril passado, o Ministério das Finanças decidiu suspender o normal funcionamento das instituições, enveredando por caminhos de microgestão e de bloqueio.

Mas as questões de autonomia não se confinam aos aspetos financeiros. Há outras vertentes, como, por exemplo, a organização interna das instituições, a criação de cursos e fixação do número de vagas, ou a gestão dos trabalhadores.

A prática demonstra que se está muito longe de um qualquer reforço de autonomia e, em muitos casos, ocorre precisamente o contrário, sem que seja conhecida qualquer estratégia subjacente. Invocam-se argumentos fáceis, para os tempos que atravessamos, como a necessidade de reduzir a despesa pública ou, como vem sendo repetido, de racionalizar a rede de ensino superior, entenda-se reduzir a rede pública.

Ora uma coisa é fixar, de cima para baixo, com regra e esquadro, e talvez por palpite, qual o número de universidades que deve existir, que cursos devem funcionar ou encerrar, as vagas para novos alunos, ou, até, que instituições devem colaborar entre si. Processo este que pressupõe uma forte crença na capacidade de tudo bem planear e decidir centralmente, num modelo, afinal, de autonomia mínima, e que facilmente se torna refém do curto prazo.

Coisa diferente é definir prioridades políticas, estratégias e o correspondente nível de financiamento público, assegurando a rigorosa prestação de contas e a garantia de qualidade, mas permitindo às universidades, e às pessoas - a cada um-, a escolha dos seus percursos, se necessário, como aliás já vem acontecendo, com recurso a outras fontes de financiamento. Com verdadeira autonomia.

sábado, 1 de junho de 2013

A história repete-se

A história repete-se. Repete-se, ainda que noutro tempo e noutro lugar, como se as diferentes partes do mundo estivessem, apenas, em eras diferentes; sendo possível viajar no tempo ao viajar entre lugares. Repete-se porque a história, para o ser, tem de ser vivida; e porque mesmo que já tenha sido vivida por outros, e as situações sejam em tudo semelhantes, tendemos a acreditar que a nossa história será diferente, porque é a nossa e porque nós não somos os outros.

Sobre as Universidades, Estados Unidos da América, ano 2000:

"Universities are increasingly seen as key sources to the new knowledge and educated citizens so necessary for a knowledge-driven society. After two decades of eroding  public support at the state and federal level, there is an increasing call for reinvestment in higher education.

Yet there is great unease in our campuses. Throughout society we see erosion in support of important university commitments such as academic freedom, tenure, broad access, and racial diversity. Even the concept of higher education as a public good is being challenged, as society increasingly sees a college education as an individual benefit determined by values of the marketplace rather than the broader needs of a democratic society. The faculty feels increased stress, fearing an erosion in public support as unconstrained entitlements grow, sensing a loss of scholarly community with increased disciplinary specialization, and being pulled out of the classroom and the laboratory by demands of grantsmanship.

To continue with Dickensian themes, while we may be entering an age of wisdom - or at least knowledge - it is also an age of foolishness. (...)"

J. Duderstadt (2000) An University for the 21st century.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

E há tanto para fazer, no mundo

Alternâncias e ciclos. Palavras usadas por quem quer ascender ao poder, por quem quer pemanecer no poder, por quem se vê a sair do poder. A alternância dita democrática como movimento pendular, ora para cá, ora para lá, com o pêndulo fixo no mesmo ponto, oscilando entre os mesmos extremos. Fim de ciclo, início de outro; nova corrida, nova viagem; e a história que se repete. E o mundo? E os outros?

"Percebe-se, deste modo, como as alternâncias, ou os ciclos, na governação (a nível nacional, europeu ou mundial) não nos podem excitar quer intelectual, quer moralmente. É que só deles parecem beneficiar aqueles que se organizam vitoriosamente para a conquista do poder político público. O mundo que espere.
E há tanto para fazer, no mundo. E tanto por fazer. Há certamente que começar, de novo, mas sem iniciar mais um ciclo. Há que quebrar a ignorância, fazendo reviver a esperança. O futuro será luminoso, se iluminado pelo conhecimento dos erros do passado."

João Caraça em À procura do Portugal Moderno (2003)

sábado, 18 de maio de 2013

Conhecimento descartável

Muito do conhecimento disponível não é, pura e simplesmente, utilizado nas decisões do dia a dia, na gestão, na política.

Desde os primeiros níveis de ensino até ao ensino superior é frequente ouvir estudantes dizer "isso é matéria de outra disciplina", "já demos isso, mas foi no ano passado", "não é para saber porque não sai no teste".

É a valorização do conhecimento efémero, descartável, que não se transforma em sabedoria, sabedoria de saber. Do conhecimento instrumental para passar ao próximo nível no jogo do ensino. E que o próprio modelo de ensino, em conjunto com a falta de colaboração entre professores, propaga; um modelo fragmentado à partida, deslaçado entre matérias e níveis, e ao sabor de cada docente. "Aprenderam assim mas aqui agora é assado", "já deviam ter dado isto", "esqueçam o que aprenderam".

A propósito dos bons resultados que as escolas de gestão têm obtido em classificações internacionais, João Duque, Presidente do Instituto de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa, escreve hoje, no Expresso: "Mas se as escolas de gestão portuguesas são tão boas, por que razão temos os indicadores económicos tão em baixo? Dá vontade de perguntar se esquecemos os ensinamentos das aulas, se são os custos de contexto, se a economia pública, ou se pura e simplesmente fazemos como S. Tomás...".

E não é só na gestão que isto acontece.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Respeitosas divergências

Com opinião; com respeito; sem reservas; sem cerimónias.

"Mas homens diferentes vêem frequentemente o mesmo assunto de formas diferentes e, por isso, espero que não seja considerado uma falta de respeito a esses cavalheiros que eu, tendo opiniões totalmente opostas às deles, exponha os meus sentimentos livremente e sem reservas. Não é altura para cerimónias."

Extrato da intervenção de Patrick Henry, advogado, natural da Virgína, proferida a 23 de março de 1775 na assembleia daquela que era, então, uma colónia britânica, e em que fez a apologia da guerra de independência.

Discurso incluído na obra: 50 grandes discursos da História (2011), seleção e apresentação de M. Robalo e M. Mata.

sábado, 11 de maio de 2013

Com "sensu"

"Consenso" tornou-se a mais recente palavra da família das palavras ocas, despidas de sentido, de sensu. É o que acontece à maioria das palavras que entram no jargão político e são repetidas até à exaustão; exaustão de quem as ouve.

Consenso, acordo de uma grande maioria da opinião pública.
Consenso, consentimento, anuência.

Invoca-se o primeiro, o acordo, na esperança de se alcançar o segundo, o consentimento. Porque para acordo é preciso, desde logo, haver matéria, e ação de ambos os lados; para o consentimento basta a resignação de uma parte.

Prefiro coisas com sensu, com bom sensu, do que um qualquer consenso, acordado entre uma grande maioria, mas desprovido de nexo.

Prefiro argumentar e discordar, abertamente, do que entrar em consensos em torno de nada ou, mais frequentemente ainda, em consensos que o são apenas de nome; consensos em que, por vontade própria ou por falta dela, as vozes fogem do espaço público e remetem-se para os corredores, a resignação se instala e a passividade cresce, e as pessoas se recolhem nas suas conchas não participando, afinal, no dito, mas aguardando por melhores dias.

O consenso não tem propriedades mágicas, não resolve nada por si só, não engana os olhares, de dentro ou de fora.

A procura do consenso, essa sim, se for genuína, pode ter o efeito estimulante de discutir alternativas, de ouvir e de tentar compreender o(s) outro(s), de questionar as nossas certezas, de reunir opiniões e maneiras diferentes de ver o mundo atual e de imaginar os mundos que se querem. Independentemente da decisão final e do modo como é tomada.

"(...) consensus is always desirable, though rarely found in practice. Fortunately it is not essential either.", Peter McCaffery, The higher education manager's handbook.

domingo, 5 de maio de 2013

A estrada chama

Manhã serena, de sol temperado por nuvens altas.
A estrada chama.
Deslizo, quase em silêncio.
O toque do vento, sempre presente nesta terra; hoje, ligeiro.
Meio homem, meio máquina; pés-pedais, subindo e descendo; cadência certa.
O cheiro quente das salinas.
Uma rapina em voo baixo, muito baixo, mesmo ali; talvez a mesma de outro dia.
Estrada quase deserta.
Uma borboleta que passa; algumas aves.
Barcos imóveis, sós, sem gente.
Ao longe adivinha-se o mar, sob um tapete de nuvens, cinzentas.
No veleiro, apenas imaginado, o som do vento e das ondas; o céu escuro; sol em terra.
Uma pequena inclinção; um pouco mais de força.
A ponte.
Um estreito carreiro para os homens-máquina.
O chão é ondulado, incómodo, alaranjado.
Do lado esquerdo a grade, que nos separa da estrada onde as máquinas têm pessoas.
Do lado direito a ria, azul, cheia.
Do lado de lá da ponte, que agora é de cá, outra luz, mais sombria, outro ar, mais húmido.
Nevoeiro quase, mas que não toca na terra.
A ponte é sempre uma passagem.
Caminho de regresso, o mesmo mas diferente.
A estrada move-se em sentido contrário; o vento também.
Novamente uma rapina, talvez a mesma, a de sempre, agora sobre os campos.
Um comboio parado, sem destino.
Montes de areia.
Pensamentos, fragmentos, palavras escritas.
Curvado, mais máquina ainda, a estrada passa, veloz.
Cidade.
Tempo que já foi; tempo real; tempo imaginado; tempo medido; uma hora apenas.

sábado, 4 de maio de 2013

Frankenstado

Sustentabilidade; austeridade; crescimento; défice estrutural; exportações.
Imperativo nacional; estratégia; consenso; construção do futuro.
Credores; parceiros; culpados; virtuosos; aliados.
Crentes; descrentes.
Patriotas.

Apregoam-se frases feitas.
Responsáveis; ex-responsáveis; futuros responsáveis; os que pairam por aí.
Comentadores; políticos em trânsito televisivo; jornalistas.
Pessoas comuns, no trabalho e na rua.

Vendem-se lugares que se tornaram comuns.
Há quem os compre, por convicção ou à falta de melhor.
Esperando que o poder da palavra crie uma realidade alternativa.

Invoca-se a necessidade de reformar o Estado, mas não se debate o papel do Estado.
Somam-se parcelas subtrativas, em busca de um resultado mágico.
Mas a meta, o compromisso, o designío, permanece inalcançável.
E então anunciam-se outras metas, sempre irrefutáveis.
E diz-se que o rumo é certo.

Cortar, cortar sempre.
A direito ou a torto.
Com demagogia.
Com intocáveis.

Há quem queira um estado mínimo.
Miragem de um Estado Bonsai.
Miniatura com harmonia.
A mão empunha a tesoura.
Sem visão, sem arte, sem tempo.
Aprendizes de feiticeiros.

Há quem queira um estado máximo.
Tudo ao alcance de todos.
Aconchegante e indolor.
A mão procura, em vão, o que distribuir.
Sem visão, sem arte, sem tempo.
Aprendizes de feiticeiros.

Os "outros", tão seguros como os "uns".
Enformar? Reformar? Deformar? Cercear?
Estado.
Insuflado por uns.
Esmagado por outros.
Puxado em diferentes direções.
Cambaleando.
Frankenstado.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Cronologia de um despacho - Epílogo

No episódio anterior:

"Dia 23: Conselho de Ministros - meia-maratona - água com aditivos para a economia.
Previsão 3 (silêncio)

Dia 26: Novo Conselho de Ministros e fim da terceira semana pós-despacho.
Antevisão 1: cortes sérios e despacho revogado.
Antevisão 2: anúncio da estratégia de cortes para discussão com todo o mundo e ... água
."

Mais uma previsão errada. O final era outro.

Dia 24: É divulgado o despacho, assinado a 23, que revoga "o" despacho.
O seu teor esclarece que os objetivos originais foram alcançados na reunião do Conselho de Ministros ... não de 23, mas de ... 17 de abril, na qual foram definidos "os ajustamentos na despesa dos Programas Orçamentais." E ainda que é necessário cumprir a Lei [neste caso a dos compromissos] e a respetiva Regulamentação!

Vá-se lá perceber a utilidade disto tudo! Que ninguém explicou seriamente! Não acredito que fosse um imperativo legal, motivado pela inconstitucionalidade de artigos do orçamento, porque essa só será afastada com um novo orçamento, devidamente aprovado. Não acredito que fosse uma medida cautelar de gestão, até à definição de novos tetos orçamentais nos programas, porque não seria em duas semanas, em meados de abril, que os tetos para todo o ano de 2013 seriam atingidos. Acredito que pode ter sido apenas para português ver e para troika ver, partindo do triste princípio que uns e outros, afinal, pouco vislumbram para lá da poeira levantada.

Cronologia de um despacho que não permite despachar

Dia 8: é assinado o despacho que não permite despachar (salvo algumas exceções e a autorização do Ministro das Finanças). O despacho prevê a sua própria revogação em Conselho de Ministros.
Previsão 1 (de alguns entendidos): a situação iria apenas durar alguns dias, 2 ou 3.

Dia 11: Conselho de Ministros - água.
Passou a primeira semana.

Dia 17: Conselho de Ministros maratona - água.
Previsão 2 (de um membro do governo) - será revogado no próximo, agendado para o dia 23.
Passou a segunda semana.

Dia 23: Conselho de Ministros - meia-maratona - água com aditivos para a economia.
Previsão 3 (silêncio)

Dia 26: Novo Conselho de Ministros e fim da terceira semana pós-despacho.
Antevisão 1: cortes sérios e despacho revogado.
Antevisão 2: anúncio da estratégia de cortes para discussão com todo o mundo e ... água.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Jornalismo? Portugal NÃO É a 4ª pior economia do Mundo

O Correio da Manhã cita o World Economic Outlook do FMI para dizer que Portugal é a pior 4ª economia do Mundo. Título que "vende", seja nos jornais ou nas redes sociais. Título propício à auto-comiseração ou ao argumentário de quem, legitimamente, e muito provavelmente com toda a razão, quer uma mudança de rumo. Título falso.

Sim, Portugal foi a 4ª economia que mais recuou em termos de Produto Interno Bruto, quando comparamos o ano de 2012 com o ano de 2011 (tabelas das páginas 150 e seguintes do dito relatório). Sim, é um péssimo desempenho e um péssimo sinal. Sim, perder qualidade pode ser mais deprimente do que ganhar alguma, por pouco que se tenha e por pouco que seja.

Mas isso não é o mesmo que afirmar que Portugal é a 4ª pior economia do Mundo. Quem tinha 100 e perdeu 3% fica com 97. Quem tinha 10 e cresceu 100% fica com 20. Mas 97 continua a ser muito maior que 20.

Se acham que não, mudem para algumas das economias que estão a crescer, por exemplo em África, e experimentem se são melhores.

Recusemos a manipulação.

domingo, 14 de abril de 2013

Autonomia comparada

O recente relatório sobre o Estado da Educação 2012, do Conselho Nacional de Educação (disponível em www.cnedu.pt) contém um capítulo sobre as questões da autonomia do ensino superior em Portugal, da autoria de Pedro Teixeira, Alberto Amaral e António Magalhães.

A perspetiva adotada é, sobretudo, a da evolução histórica da autonomia institucional em Portugal, e da comparação à escala europeia. Sendo a autonomia, nas suas diferentes dimensões, matéria complexa, como é repetidamente referido no texto, algumas das afirmações são insuficientemente sustentadas e a realidade nacional não é suficientemente analisada.

Nas notas finais é afirmado "Se nalguns aspetos as instituições portuguesas têm hoje um nível de autonomia médio-alto quando comparadas com as universidades de outros sistemas europeus, noutros aspetos o grau de autonomia permanece baixo relativamente às suas congéneres europeias. Estes sinais são preocupantes por duas razões. Em primeiro lugar porque existe hoje uma perceção consolidada nos estudos de ensino superior de que o desempenho das instituições está correlacionado (embora de modo complexo) com o grau de autonomia das instituições e, por isso, estamos a contribuir para um desempenho institucional aquém do possível. Em segundo lugar porque as instituições portuguesas fazem parte de um espaço europeu de ensino superior crescentemente integrado e concorrencial, e no qual as instituições mais autónomas tenderão a ter uma vantagem competitiva significativa, nomeadamente em termos de atratividade para futuros estudantes, docentes e investigadores.".

Ora, no quadro incluído no artigo, e que consta de um estudo da European University Association, de 2011, sobre autonomia (ver publicações em www.eua.be), constata-se que Portugal se posiciona, entre os países europeus, em 7º lugar no que se refere a autonomia organizacional e financeira, em 18.º no que se refere a autonomia de pessoal e 21.º em autonomia académica.

Breves notas.

A França tem um desempenho muito pior, em todos os indicadores. A Holanda tem uma classificação inferior em autonomia organizacional e académica, e superior em financeira e de pessoal.

A classificação em matéria de autonomia de pessoal, ainda assim posiciona Portugal num grupo numeroso com autonomia média-alta, decorre, sobretudo, do estatuto de trabalhadores em funções públicas, com as inerentes limitações externas em termos de gestão.

A autonomia académica refere-se, designadamente aos processos de criação de cursos e de garantia qualidade, sendo considerado que dependem, muito, de fatores externos. Ora esta "baixa" autonomia não impediu a proliferação de cursos, por iniciativa das instituições e registados pela tutela.

A atratividade está, obviamente, dependente de muitos mais aspetos para além da autonomia: o nível de financiamento público e privado, a língua, as infraestruturas científicas, a qualidade e o prestígio já alcançado.

Em relação à situação portuguesa nada é dito sobre a existência de 3 realidades distintas, ou, pelo menos, de 2 e mais qualquer coisa: as universidades públicas, as universidades públicas com regime de direito privado (vulgo, fundações), e onde estudam cerca de 13% dos alunos, e as universidades privadas, que contam com cerca de 20% dos alunos do ensino superior.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Autonomia(s)

Autonomia - palavra com muitos sentidos; ou como a mesma palavra, neste caso usada no contexto das Universidades, permite falar de mundos paralelos e de mundos perpendiculares, dependendo do ponto de vista, transformando assim aparentes diálogos em monólogos; ou ainda como a expressão "reforço da autonomia institucional", politicamente muito em voga, é desprovida de todo o sentido, se não for acompanhada de cabal descrição.

"By contrast, many of the initiatives currently associated with extending institutional autonomy are not a guarantee of resources assigned. Rather, they exert pressure upon the institution itself to find, acquire and develop on its own this capacity so as to better secure the resources necessary to carry forward the reform the legislator has in mind. Today, institutional autonomy is seen in a rather different light by the legislator than it is by the Academic Estate."

Guy Neave (2012) The evaluative state: instituional autonomy and re-engineering higher education in western europe - The Prince and his pleasure.

quarta-feira, 27 de março de 2013

RJIES - a revisão quase, quase

Três horas e meia de audição da audição parlamentar à equipa do Ministério da Educação e Ciência.

Um verdadeiro teste à paciência (benditas partidas de xadrez de quatro horas e mais).
Uma oportunidade de praticar a multi-tarefa (porque ninguém aguenta tanto, como se comprovou pelas sucessivas chamadas de atenção do Presidente da Comissão de Educação e Ciência).
Um exercício de resistência às tonturas (causadas por discursos circulares ou espiralados).
Uns assomos de enjoos (a propósito de tiradas demagógicas ou de práticas parlamentares).
Uns devaneios (quando as intervenções perdiam qualquer rumo).
Ilusões (de valorização do trabalho parlamentar e governantivo, porque parece fácil ser mais objetivo nas perguntas e claro nas respostas).

Sobre a repetidamente anunciada revisão do Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior fiquei a saber, pela voz do Secretário de Estado do Ensino Superior, que:

1. Foi efetuada uma extensa e profunda avaliação da Lei de 2007, envolvendo várias personalidades, instituições e serviços.

2. Uma Lei desta natureza não deve sofrer alterações profundas em apenas cinco anos, pelo que a revisão será "limitada a certos aspetos e intenções".

3. A revisão em curso permitirá "precisar, reafirmar, reforçar" a autonomia das instituições, considerada importante neste contexto de dificuldades orçamentais.

4. Está muito perto do fim a discussão dentro do Governo (já não dentro do MEC), uma vez que envolve outros ministérios (certamente o das Finanças).

5. Depois a proposta será colocada em discussão com os parceiros.

A pergunta que esteve na origem destes esclarecimentos pretendia, essencialmente, que o Governo esclarecesse qual o calendário para a revisão do RJIES ...

Em relação à rede do ensino superior pouco foi dito. Mas, uma vez mais, foi claro que o PSD e o CDS, na linha de intervenções anteriores e de artigos de opinião, consideram que o Governo deve assumir a iniciativa nesta matéria e ter uma atitude pró-ativa. O Governo parece discordar, silenciosamente, remetendo a responsabilidade para as instituições, quanto mais não seja através do elogio da fusão entre a U. Lisboa e a U. Técnica de Lisboa, que, como confirmou o Secretário de Estado, também está quase, quase, mas ainda não está.

sábado, 23 de março de 2013

Estudo e relatórios

Click, Antena 1 (http://www.rtp.pt/programa/radio/p3053/c111504)

Os relatórios e estudos fazem parte do nosso quotidiano. Com mais ou menos números e gráficos, mais ou menos opinião, são usados para decidir, mas também, para justificar decisões já tomadas ou mesmo para sustentar indecisões. Talvez por isso venham, normalmente, rotulados à partida: externos e independentes; elaborados por entidades credíveis e por técnicos com grande experiência; rigorosos, factuais e objetivos; científicos. Rótulos que parecem querer limitar a possibilidade de discussão, como se o conhecimento e a ciência fossem determinísticos e imunes a valores, correntes e tendências.

Vem isto a propósito, não da 7ª avaliação da troika ou da comparação salarial entre o setor público e o setor privado, mas de um relatório, recente, sobre o sistema de ensino superior português, elaborado pela Associação Europeia das Universidades - EUA. É um estudo que se junta a outros, como o elaborado pela OCDE em 2006, e que antecedeu a alteração do regime jurídico das instituições do ensino superior, ou os que são promovidos por entidades nacionais como a Agência de Acreditação e Avaliação, o Ministério da Educação e Ciência ou o Instituto do Emprego e Formação Profissional.

Este trabalho da EUA consiste, essencialmente, numa reflexão sobre as opiniões de muitos dos intervenientes no Ensino Superior português. Desengane-se quem aqui procura uma resposta para alguns dos temas mais mediáticos, como sejam: o número de instituições, a reconfiguração da rede, os níveis de financiamento, a essência das diferenças entre universidades e politécnicos ou mesmo a relação entre oferta pública e privada.

Contém, no entanto, propostas de rotura como seja a atribuição de um novo papel ao Conselho Coordenador do Ensino Superior - um órgão previsto na Lei, mas que não existe. Este Conselho passaria a ter a responsabilidade de elaborar um plano de longo termo para o Ensino Superior, e também de aprovar e acompanhar os planos de cada universidade e de cada politécnico. Isto representa uma profunda alteração da distribuição de poder, com uma ideia subjacente clara: tornar a definição estratégica e a condução do sistema independente dos ciclos governativos.

Ora, nenhum estudo substitui uma visão interna, dos portugueses, sobre o que se pretende para Portugal, sobre opções e consequências, sobre incertezas e riscos. Nenhum estudo afasta a necessidade de debater e a responsabilidade de decidir. Nenhum estudo afasta a responsabilidade de participar; responsabilidade que é de todos nós.

sábado, 16 de março de 2013

Falta Governo

Tenho aqui criticado, várias vezes, o vazio de pensamento político e de ação em matéria de ensino superior, designadamente por parte do(s) Governo(s).

O Ministério da Educação e Ciência nada discute, mas vai legislando ou, melhor, anuncia em termos vagos que pretende legislar e, um dia, eventualmente, apresentará as suas propostas. Senão vejamos. Logo após tomar posse anunciou que ia rever o sistema de financiamento do ensino superior, já lá vão quase dois anos e aproxima-se rapidamente a preparação inicial do orçamento de 2014. Anunciou que ia extinguir as universidades-fundação; de seguida que talvez fosse, sobretudo, uma questão de mudar de nome (!);  e, entretanto, nada mais; passaram oito meses. O regime jurídico das instituições de ensino superior irá ser revisto, como vem sendo repetidamente anunciado; nada de concreto se conhece. A última anunciação é a de um novo modelo de formação de ensino superior curto, de 2 anos, mas do qual nada se conhece; e que, a crer no Governo entrará em funcionamento no próximo ano letivo, ou seja, daqui a 6 meses; as instituições que se preparem.

São exemplos de uma política (à espera de ser) feita em gabinetes, sem participação (no Parlamento as propostas de lei terão de ser discutidas, mas é claramente insuficiente), por decreto, sem visão.

Talvez por isso, a deputada Nilza de Sena, Vice-Presidente da Comissão Política Nacional do PSD e Vice-Presidente da comissão parlamentar de Educação, Ciência e Cultura, escreve hoje, em artigo de opinião no "Expresso": "A definição de um rumo para o ensino superior passa precisamente por uma decisão política que inaugure um ciclo de competitividade das nossas instituições. (...) O que falta [ao ensino superior português] é assumir esta área como estratégica para a afirmação do país e o Governo decidir politicamente que quer chegar lá.".

Falta Governo. Pode ser que haja Parlamento. Haja Sociedade.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Ensino Superior: profissões em mudança

O Times Higher Education de hoje dá destaque à evolução do número de trabalhadores no Ensino Superior, entre 2009/2010 e 2011/2012. Nas ilhas britânicas há mais trabalhadores não académicos do que académicos, o que é, desde logo uma realidade muito diferente da portuguesa; mas haverá aspetos comuns no modo de olhar a realidade, das associações que se fazem e das tendências.

Eis alguns elementos:
- a redução de trabalhadores incide, sobretudo, no pessoal não académico;
- são particularmente afetadas áreas técnicas;
- em alguns casos aumenta o recurso, numa base informal, a pós-docs, para suprir estas funções.
- aumenta o outsourcing, por vezes com transferência de trabalhadores das instituições;
- há mais trabalhadores na área social (5,1%), relações públicas e afins (1,5%) e gestão (1,2%).


"I think the fundamental issue is that we tend to see research or teaching in higher education as just for academics... and we don't have any champions for the support staff, particularly technicians"

"The increase in managerial numbers was likely down to an increasingly complex regulatory environment, he added, while the rise in PR staff could be explained by "a growing interest and need to communicate with stakeholders" including students and members of the local community."

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Princípios de príncipes

"Depois, deve animar os seus cidadãos a dedicarem-se paulatinamente às suas actividades, ao comércio, à agricultura, e a todos os outros labores humanos, e que um não tema embelezar as suas propriedade com receio de que lhe sejam tiradas, e que outro não tema abrir um comércio por medo dos impostos; mas, ao contrário, deve estabelecer prémios para os que queiram fazer essas coisas e para todo o que pense ampliar de qualquer modo a sua cidade e o seu Estado. Deve, além disso, nas fases convenientes do ano, manter ocupados os povos com festas e espectáculos. E porque toda a cidade está dividida em corporações ou em classes, deve ter em conta essas comunidades, reunir-se com elas alguma vez, dar de si exemplos de humanidade e munificência, conservando sempre firme, não obstante, a majestade da sua dignidade, porque isto não deve faltar em coisa alguma."

Em O príncipe, Maquiavel, Cap XXI - O que convém a um príncipe para que seja estimado.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Trabalhadores não-não

Notas de janeiro, no Click (http://www.rtp.pt/programa/radio/p3053/c105407).

A palavra Universidade evoca imagens de alunos e de professores; de investigadores em laboratórios; de livros e computadores. Menos frequente será associá-la àqueles que são designados por uma afirmação e duas negações: são trabalhadores, mas não docentes e não investigadores.

As Universidades cresceram e tornaram-se pequenas cidades com alojamento, restauração, serviços, instalações desportivas, unidades de saúde, museus, arquivos, centros de conferências. Em Aveiro – município com cerca de 75.000 habitantes - existe uma comunidade universitária que reúne 15.000 pessoas. Ou, olhando de outro ângulo: existem, em Portugal, cerca de 900 empresas (nos setores não-financeiros), com mais de 250 trabalhadores; só a Universidade de Aveiro tem cerca de 1700 no total, dos quais mais de 650 são estes outros trabalhadores de que falo.

Mais crítico que o simples crescimento é o alargamento da missão das universidades, sendo a prestação de serviços baseados no conhecimento apenas um dos exemplos, e a transformação rápida do ambiente em que operam: escassez de recursos; maior competição; exigente prestação de contas; quadro legal demasiado complexo e instável; maior internacionalização pondo em contacto culturas e sistemas distintos.

O leque de profissionais ao serviço das Universidades inclui, entre outros, hoje gestores, contabilistas, juristas, informáticos, secretários, engenheiros, arquitectos, motoristas, bibliotecários, assistentes sociais, cozinheiros, técnicos de laboratório, de som e de imagem, assessores, telefonistas, designers. Muitos têm elevadas qualificações académicas ou uma grande experiência profissional.

As Universidades são, por tudo isto, instituições únicas, compostas por muitas tribos: a dos docentes e a dos não docentes; mas também a de cada área científica e a de cada área profissional; a de cada faculdade ou departamento; de cada serviço; dos serviços centrais e dos serviços locais.                                              

As Universidades que melhor gerirem esta realidade, mediante a compreensão recíproca dos diferentes papéis e competências, criando condições para aproveitar o conhecimento de cada um e para desenvolver o seu potencial, terão condições para fazer a diferença, permitindo que os docentes e investigadores ensinem e investiguem, proporcionando uma experiência mais rica aos estudantes e trabalhando melhor com a sociedade.