sábado, 30 de maio de 2015

O Pré-Programa do PS (I)

Os programas políticos, em matéria de ensino superior, são, em geral, vagos e redondos. Oscilam entre os pregões de uma autonomia, sempre mais reforçada, e uma vontade mal escondida de conduzir mais de perto os destinos das instituições de ensino superior. Falta visão, falta diagnóstico, falta fundamentação, falta concretização. Enfim, costuma faltar tudo aquilo que as verdadeiras opções encerram.

O documento de trabalho do PS, em discussão, não foge à regra: reativar um pacto de confiança, designação com ecos do passado, de um "contrato de confiança" que resultou apenas em mais desconfiança; reforçar a autonomia, presume-se em relação ao próprio governo e em particular ao ministério das finanças, mas desde logo estimulando a adoção do regime fundacional; consolidar e desenvolver a natureza binária do ensino superior, sem mais dizer sobre o assunto; apoiar a flexibilização de horários em todos os anos de todos os programas. 

Eis, para começo de conversa, o verbo, os verbos, das medidas propostas pelo PS:
- alargar
- reestruturar e desburocratizar
- estimular
- assegurar
- estimular
- incentivar
- consolidar e desenvolver
- garantir 
- [mais] aumentar
- [mais] aumentar
- aumentar
- criar
- aprofundar e especializar
- incentivar
- inlcuir
- estimular
- desenvolver
- apoiar
- associar
- incentivar

A continuar.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Freeze!

"There are imbalances in our daily lives and we constantly struggle to transform them positively. Gaining control means finding the most favourable balance and working constantly to make positive exchanges. Norman Mailer wrote that at every moment we are either 'living a little more or dying a little bit'. There is no standing still, no maintaining a perfect equilibrium. We can, however, in effect freeze time by pausing for a moment in our constant search for what to do next and instead clamly evaluate the pluses and minuses. We can flout the laws of thermodynamics to create energy and quality through positive transformations."

G. Kasparov (2007) How life imitates chess.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Noite

É noite na sala. Ligo o candeeiro. A luz, amarelada, enrosca-se sobre a mesa. Fica imóvel, quase sem respirar, quente. Tudo o resto são sombras. Encostadas às paredes, sentadas nas esquinas, deitadas sobre o tapete, folheando os livros. Sombras e silêncio. A cidade já dorme. A casa também. Foram-se os passos. Foram-se as vozes. Foram-se os ruídos. Ligo a música. Ouço o sax suave de Paul Desmond. Ouço a música e sinto o silêncio que está ao meu lado. Sobre a mesa, um copo, alto. Gin n.º 3, água tónica e limão. E gelo que murmura. Ligo o ecrã. Luz branca e fria que espera, pacientemente. Espera pelos dedos, pelo deslizar. Pelo toque que lança letras, negras, que se penduram. Pelo sapateado que forma palavras. Pelas palavras que formam frases. Espera pelo sentido. Espera que faça sentido. Escrevo. Gosto da noite.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Público e privado

O Fundo Monetário Internacional divulgou, hoje, o documento "Portugal - selected issues paper" . Hoje, meados de 2015. Folheei o documento. De relance. Algumas pesquisas de palavra-chave. O que encontrei lembrou-me declarações passadas do Primeiro-Ministro. Verão de 2011. Que remetiam para um relatório do Banco de Portugal, de 2009. A famosa frase sobre os vencimentos no setor público serem 10 a 15% superiores aos do privado. Que serviu de álibi aos cortes que se seguiram.

Na altura, 2011, escrevi a esse propósito um texto, que intitulei "O embuste". Nele escrevi que o citado relatório não suportava as conclusões do Governo. Dizia o Relatório "No caso das profissões nas quais ambos os setores são empregadores importantes verifica-se uma penalização [no setor público], a qual indicia pouca capacidade por parte da Administração Pública para atrair os trabalhadores que as desempenham. Pelo contrário, o prémio é particularmente alto em áreas como a saúde e a educação, nas quais o setor público é o principal empregador, o que em parte reflecte o forte poder negocial dos funcionários públicos nestas áreas."

Ou ainda: "Os funcionários públicos têm um ritmo de progressão na carreira mais lento do que os seus congéneres do sector privado."

O que me levou, então, a concluir: "Desconhecimento? Impreparação? Justificação de última hora? Falta de coragem para assumir a facilidade prática da medida? Pura manipulação para reduzir a contestação de trabalhadores públicos, para induzir uma fratura entre trabalhadores do público e do privado, ou para a breve trecho, alargar a medida aos privados? Qualquer destas razões é má e traz consigo a falta de confiança. A verdade não se apregoa, pratica-se!".

Passaram quase quatro anos. A troika saiu. Há quem celebre muitos sucessos. Bons indicadores, à boleia de outros Países, como se fossem só nossos. A reforma do Estado é uma miragem. Anúncios de estudos e guiões. Soundbites que já não soam. A mistificação sobre público e privado continua, e deixou raízes. Mas só acredita quem quer. Ou melhor, quem não quer ver, ler, pensar.

Hoje, escreve o FMI: "A key objective should be to reduce the disparity between public and private sector wages. At present, lesser qualified workers receive relatively high pay in the public sector compared to both peers in the private sector and more highly skilled civil servants. In addition, the wage grid is relatively flat and depends mostly on years of experience, rather than performance. This makes it difficult to attract highly qualified staff, as private sector opportunities (with lower entry salaries but steeper increases for performance) are considerably more attractive. In order to become more attractive for highly-skilled workers and benefit from ongoing improvements in the quality of tertiary education, the civil service should identify specific skills that are needed in the public sector, and revised the relatively flat wage structure that proves costly and impairs talent attraction in these areas."

Passaram 6 anos sobe o relatório do Banco de Portugal. O declínio continua. O declínio continuará, à medida que quem quer mais salário e reconhecimento sair do Estado e procurar outras oportunidades. Deixando um Estado menos capaz. Menos capaz de regular. Menos capaz de providenciar.

Portugal, selected issues paper: http://www.imf.org/external/pubs/cat/longres.aspx?sk=42937.0.
O embuste: http://notasdasuperficie.blogspot.pt/2011/10/o-embuste.html.

domingo, 3 de maio de 2015

À consignação

Com a aproximação das eleições, e ainda antes dos programas partidários, começam a surgir, ou a ressurgir, propostas e medidas várias, que vale a pena analisar, comentar, criticar, melhorar, ou descartar.

Um dos documentos recentemente divulgados é o relatório "Uma década para Portugal", que se centra, segundo os autores, na apresentação de um "caminho para a promoção do desenvolvimento económico e da coesão social".

Em matéria de ensino superior, e apesar de apresentar um diagnóstico em que refere a conhecida baixa qualificação da população portuguesa e o enfraquecimento recente das instituições de ensino superior, centra-se unicamente, ao nível das propostas, no papel que as instituições de ensino superior devem ter na promoção da empregabilidade dos seus alunos (pág. 60 - "Reforçar o acesso e a empregabilidade no ensino superior").

E quais são as propostas? Basicamente duas: 1) Alocar recursos adicionais às universidades para ações de promoção de empregabilidade. 2) Criar incentivos de médio e longo prazo visando premiar resultados neste domínio e, sobretudo, para que as instituições adaptem os seus programas, através do reforço de competências várias e da promoção de estágios, por exemplo. Neste domínio ponderam consignar uma proporção do IRS pago pelos ex-alunos de cada Universidade ao seu financiamento.

Vamos por partes, reconhecendo desde logo que este não é um documento de política setorial que não tem, nesta matéria, detalhe suficiente, e que muita da reflexão que se segue será aplicável a propostas dos mais variados setores.

1. A palavra "empregabilidade" pontua todos os discursos, com aparente consenso; mas, de tão gasta, tornou-se um chavão impreciso, à semelhança do que aconteceu, por exemplo, com a expressão "desenvolvimento sustentável", há algumas décadas. Valeria a pena começar por aqui: o que se entende por empregabilidade? A transição do estudo para o trabalho? Para qualquer trabalho? A curto prazo? A capacidade para se manter empregado a médio prazo? Empregabilidade é diferente de ter emprego, e mais diferente ainda de qualidade de emprego.

2. Parece estar a generalizar-se, progressivamente, a ideia de que as instituições de ensino superior (IES) deverão ser as principais responsáveis pelo emprego imediato dos seus diplomados. É uma visão meramente utilitarista do ensino superior, reduzindo-o a um objetivo meramente profissionalizante, ajustado às necessidades locais de curto prazo, sem visão de futuro, e que ignora as empresas, afinal as principais criadoras de emprego,

3. Ao eleger este como o único tema sobre ensino superior, o Relatório não enfrenta um dos problemas que diagnosticou, o enfraquecimento recente das IES, não revelando nada sobre modelo ou níveis de financiamento para o setor.

4. A primeira proposta, vaga, é a alocação de recursos adicionais às IES, para ações de promoção da empregabilidade. Não é claro que tipo de ações nem que verbas seriam envolvidas. Instituições mais fortes, com melhores equipamentos, melhores profissionais, melhor geridas, melhor avaliadas, proporcionarão melhor formação. Mas isso requer uma abordagem global e não uma afetação parcelar de uma verba.

5. A segunda proposta, de consignação de uma proporção do IRS dos ex-alunos, à sua instituição de origem, é uma medida que me parece profundamente desajustada por um número de razões:

a) Não descortino o fundamento conceptual: IRS não é só rendimento do trabalho; ainda que assim fosse, o "sucesso" financeiro não é determinado, só ou sobretudo, pelo curso, e menos ainda quanto mais se progride na carreira e na idade, com outras componentes de aquisição de experiência.

b) Ignora o mundo global, em que há diplomados que trabalham e pagam impostos noutros países; veja-se a frase: "Esta medida visa premiar cada instituição pela capacidade de gerar valor em Portugal dos alunos que formaram".

c) Beneficia as instituições maiores (mais diplomados) e com cursos em determinadas áreas (associadas a melhores remunerações médias), sendo um incentivo ao crescimento e a uma uniformização de apostas em determinadas áreas.

e) A afetação de receita, por esta via, às IES não está inserida numa perspetiva global de financiamento, nem está quantificada.

f) Implica, na prática, o Estado prescindir da capacidade de afetar a porção da receita fiscal correspondente, para Educação ou outros fins, uma vez que seria de afetação automática.

h) Tem vários problemas práticos de aplicação de que são exemplo pessoas com vários diplomas (licenciatura, mestrado, doutoramento) obtidos em diferentes instituições; ou o IRS de agregados familiares vs. consignação que corresponde ao histórico individual.

i) Não são apresentados exemplos de aplicação similar, parecendo pretender ser um substituto, imposto, de uma lógica de mecenato, prática corrente nos Estados Unidos da América, por exemplo.