sexta-feira, 30 de outubro de 2020

O Erre

 

O R já não mora aqui.
Chegou, talvez, em meados de abril.
Apresentado pela mão dos epidemiologistas de profissão.
Rapidamente apropriado por políticos, e generalizado por comentadores.
A par da descoberta das exponenciais, dos modelos matemáticos, das previsões.
Feitas por especialistas, por curiosos dos números e por opinadores.
Havia uma curva que crescia, e que era preciso achatar.
A ciência teria a chave, a política seguiria a ciência.
A crise, geral, global, mortal, levou ao consenso.
Fechar para reduzir o Erre e achatar a curva.
As pessoas aceitaram parar.
Sustendo a respiração.
Resistindo.
À espera.

Resultou.
A curva infletiu.
Suspirou-se de alívio.
Fizeram-se contas aos danos.
Começaram a desenhar-se apoios.
A anunciada segunda vaga parecia uma má profecia.

A segunda vaga chegou.
Mais lentamente que a primeira.
Talvez por andarmos de máscara.
O Erre desapareceu da comunicação.
A forma da curva já não é discutida.
É a Ministra que anuncia as previsões.
Os números soam a inevitabilidade.
O consenso foi desaparecendo.
A responsabilidade fica com o Governo.

A segunda vaga chegou.
Bem mais alta que a primeira.
A vacina ainda não chegou.
Não se sabe ao certo quando chegará.
Não se sabe ao certo o efeito que terá.

Fala-se pouco em planear.
Parece reagir-se dia após dia.
Fala-se em gestão das expetativas.
Entre a economia e a saúde.
Entre a certeza e o risco.
Não é o que se precisa.
A gestão dos outros.
Precisa-se planear para um cenário difícil.
Precisa-se planear para além do Natal.
Precisa-se admitir que vai durar.
Precisa-se construir uma linha de fundo participada.
Como fazer para apoiar quem mais necessita.
Como fazer para manter a saúde a funcionar.
Como criar alternativas para as pessoas.
Como reinventar atividades.
Como gerir a mudança.

Sim, vai ser preciso muito dinheiro, e mais do que dinheiro.
Sim, vai ser preciso reorientar as bazucas da Europa e as de trazer por casa.
Não é tempo de voltar ao que era antes, embora esse seja o desejo compreensível.
Não é tempo de um modelo dependente da construção e do turismo.
Porque é possível, e preciso, muito mais do que isso.
Não é tempo de aeroportos e de obras para daqui a umas décadas.
Porque é preciso saber como vamos atravessar os anos.

Vagueando por entre outros Erres.
Risco, Resistência, Resignação, Revolta,
Reinvenção, Resultado, Remodelação, Respeito, 
Recusa, Retórica, Reincidência, Razão, Riqueza, Retrocesso, Razoável, Resposta.