quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Números e palavras

Outono é a estação do Orçamento de Estado. É uma estação de chuva, de chuva de números, organizados em fiadas de tabelas, com valores absolutos, percentagens e diferenciais, tendências e pontos de viragem, somatórios e subtratórios. Números que, como as gotas de água, têm poder sobre a vida; sobre as nossas vidas.

Em teoria esta torrente segue um leito de prioridades, de olhares sobre a sociedade, sobre o presente e sobre o futuro. Prioridades enunciadas através das palavras, mais ou menos caras, melhor ou pior agrupadas.

Mas, na prática, os números chegam muitas vezes primeiro, empurrando as palavras para segundo plano; noutras ocasiões são as próprias palavras que deixam o palco aos números, de tão temerosas que são, tão vagas, sem rumo definido, contradizendo-se entre si ou sendo contraditadas pelas ações.

Hoje, discute-se 2014, como há um ano se discutia 2013. Com que palavras?

Eis algumas do Relatório do Orçamento de Estado para 2013, quanto a medidas em matéria de Ensino Superior, mas que se perderam no caminho, talvez de tanto gastas ao longo de anos e anos: adoção de novas regras para o financiamento público do Ensino Superior, reforçando a aplicação de critérios de qualidade; medidas de racionalização da rede pública de instituições, para melhor ajustamento da oferta formativa à procura e às necessidades do país em quadros qualificados.

E eis as que, neste domínio, constam do Relatório do Orçamento de Estado para 2013:

Adequar a oferta formativa às necessidades do país em termos de quadros qualificados, através da divulgação das taxas de empregabilidade por curso e por Instituição de Ensino Superior (IES), da aposta nas áreas de Ciências, Engenharia, Tecnologia, Matemática e Informática, e da redução de vagas em cursos com reduzida saída profissional; 

Pobres palavras, tornadas impossíveis, desde logo porque não estão definidas as ditas necessidades, depois porque a divulgação das taxas (voltamos aqui aos números) é um mecanismo macio de intervenção, que não garante a adequação pretendida.

Racionalizar a rede de IES e otimizar a utilização de recursos disponíveis, através do estabele-cimento de áreas de coordenação regional e pela fixação de limites mínimos ao número de vagas disponível para cada curso;

Palavras em apuros. Racionalizar, imagino que seja reduzir (continua o primado dos números), uma rede nacional através da coordenação regional. De instituições autónomas, potenciais nós de uma rede, viradas para o mundo, a instituições regionais e regionalizadas.

Proceder-se a uma densificação da figura jurídica do consórcio entre Instituições de Ensino Superior;

Será mesmo preciso? Talvez, não sei. Escasseiam as palavras. Não dizem o que se pretende resolver.

Criar a figura do Curso Superior de curta duração (120 ECTS) nas instituições de ensino politécnico, nível 5 ISCED com forte inserção regional e com interação obrigatória com as empresas;

Números e palavras. Ano e meio (atuais cursos de especialização tecnológica), dois anos, três anos (licenciaturas universitárias e politécnicas). A importância do nome. A importância do nível.

Assegurar a continuidade da política de ação social, tornando-a mais justa e eficiente, através da manutenção da atribuição de bolsas de estudo a estudantes economicamente carenciados com aproveitamento académico;

Palavras enredadas. Continuidade da política; mais justa e eficiente; através da manutenção. O que muda e o que permanece. Como se melhora mantendo?

Reforçar a atratividade das IES portuguesas para os estudantes estrangeiros, através da aprovação do estatuto do estudante internacional, fomentando a captação destes estudantes e facilitando o seu ingresso através de um regime específico;

Palavras em curso. Embora seja só para alguns estrangeiros, porque uns são mais que outro. Alianças e diplomacia assim o obrigam.

Reforçar a capacidade de gestão das IES, através da revisão do Regime Jurídico das IES, visando melhorar as condições de agilidade e flexibilidade da sua gestão.

Palavras que podiam ser para valer, não fosse a chuva de números e de instruções que provocam artrose nas instituições.

E por hoje acabaram-se as palavras.

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