terça-feira, 4 de novembro de 2014

Merkel, os licenciados e eu.

Por feitio e por aprendizagem não costumo reagir de pronto a notícias. Principalmente quando as mesmas suscitam, de imediato, reações empolgadas. Não reagir, pelo menos sem primeiro tentar ouvir de viva voz, perceber o contexto e refletir um pouco. Qualquer comunicação, mesmo que intermediada, ou talvez ainda mais quando intermediada, presta-se a muitos equívocos, com ou sem intenção. Problema no emissor, no canal de comunicação, no recetor. Falta de sintonia. Contextos diferentes. Línguas ou linguagens distintas. Bagagem variada. Códigos. Termos.

Vem isto a propósito do que Angela Merkel disse sobre o excesso de licenciados em Portugal. De alguns dados que surgiram. E da hipersensibilidade gerada pelo facto de ser um discurso da Grosse Deutschland, escutado no Kleine Portugal. Não encontrei a versão original, que também de pouco me serviria, uma vez que de alemão pouco mais sei do que umas quantas palavras e entendo uma ou outra frase.

Fiquemo-nos pois pela imprensa nacional e, aqui, pelo Diário de Notícias:

"A chanceler alemã, Angela Merkel, disse hoje que países como Portugal e Espanha têm demasiados licenciados, o que faz com que não tenham noção das vantagens do ensino vocacional. Citada pela agência de informação financeira Bloomberg, a chanceler alemã afirmou que o enfoque nos estudos universitários como um feito de topo da carreira é algo do qual deve haver um afastamento. "Caso contrário, não conseguiremos persuadir países como Espanha e Portugal, que têm demasiados licenciados", dos benefícios do ensino vocacional, acrescentou a líder alemã, (...).
De acordo com dados do gabinete de estatísticas europeu, em 2013, 25,3% da população da União Europeia entre os 15 e os 64 anos tinha completado estudos superiores, enquanto a percentagem portuguesa era de 17,6% e a alemã de 25,1%."

Algumas notas sobre o assunto, em jeito telegráfico.

1. Os sistemas de ensino superior são diferentes de país para país.

2. A designação "licenciados" não é internacional, sendo portanto uma tradução/interpretação.
3. Em Portugal a maioria das licenciaturas tem a duração de três anos e corresponde ao "bachelor".
4. Há bem pouco tempo, essa duração de estudos no ensino superior originava "bacharéis".
5. E os licenciados tinham 4 ou 5 anos de formação.

6. O discurso parece falar de licenciados e de ensino vocacional.

7. O sistema alemão inclui cursos de dois anos no âmbito do "ensino superior curto".
8. Estes cursos, de âmbito vocacional ou profissionalizante, têm um número significativo de alunos.
9. O governo português enveredou por esta via, criando, este ano, os chamados TeSP.

10. O contexto da intervenção parece ser este: o do predomínio em Portugal (exclusividade até ao momento) do ensino superior conducente a, pelo menos, "licenciados", face a outros percursos possíveis de ensino superior, mais "curtos" e "vocacionais".
11. A ser assim não se trata de uma apreciação, em absoluto, do número de licenciados nacionais.

12. As estatísticas apresentadas referem-se à conclusão de estudos superiores.
13. Abrangem cursos curtos e não apenas licenciaturas.
14. Há quem refira que a referida medida do Governo é, precisamente, para jogar nesta estatística.

Uma conclusão é certa: o trabalho jornalístico foi pobre. Falta de conhecimento destes meandros? Falta de estudo? Procura de um título e notícia com "impacto"?

Sociedade da informação
Sociedade da comunicação.
Sociedade do conhecimento: não estamos lá.

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