quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Palavra de especialista

"Pessoas especializadas, instituições especializadas, cidades especializadas, regiões especializadas, talvez países especializados. A especialização é um dos chavões de hoje, associado à ideia de competitividade, de sucesso e de excelência. Mais uma via de sentido único. Um chavão que tende a ser aplicado a tudo, como caminho indiscutível de verdade."

Assim começava, em 2014, um texto publicado neste blog (1), de que me recordei ao ler uma entrevista publicada no Sol (2) com a "especialista em financiamento Luísa Cerdeira". Porque prefiro factos e argumentos à reputação de quem fala; porque valorizo mais a substância do que a forma; porque circula e é repetida muita opinião, sem base que a sustente ou, até, com abundante base que a desmente. Por tudo isto, vamos ao que é dito na entrevista. Ao que é dito de errado.

"O congelamento das propinas vai-se retratar numa redução significativa das receitas das universidades e dos politécnicos."

Congelar propinas não reduz receitas. O que faz é não as aumentar. Consta isto de aritmética elementar. E isso é o que várias instituições já fazem, há vários anos, por opção própria no exercício da autonomia que tantas vezes reclamam. É o caso da segunda maior universidade, a U. Porto, que mantém o valor das propinas de 1.º ciclo e mestrado integrado em 999 euros, ou seja, bem abaixo do valor máximo que poderiam cobrar.

"O congelamento das propinas só poderia acontecer se fosse aumentada a dotação transferida pelo Estado."

Tal afirmação parte do princípio que as instituições pretendem aumentar as propinas e que, portanto, devem ser ressarcidas se não o puderem fazer. Como vimos, não é essa a opção de todas as instituições. Nem sequer sei se será o da Universidade de Lisboa;  a não ser que ela pretenda aproximar-se de propinas à inglesa para mestrados e doutoramentos.

Por outro lado, a atualização do valor máximo das propinas para 1.º ciclo e mestrado integrado está indexada à variação do Índice de Preços no Consumidor. Se esta fosse de 2%, por exemplo, estaríamos a falar de cerca de 20 euros por estudante.

"De uma maneira geral, o que acontece em Portugal é o que acontece nos outros países da Europa. Não estarem determinadas as propinas de 2º e 3º ciclo dá uma certa margem de manobra às instituições. Os valores acabam por estar nivelados em todas as instituições com as bolsas da Fundação para a Ciência e Tecnologia" 

Há matérias em que há profundas diferenças entre os países da Europa, e uma delas é o valor das propinas: desde propinas zero (como na Alemanha), a valores simbólicos, e a montantes vão até 9.000£. E afinal, se os valores são nivelados pelas bolsas da FCT (o que é verdade para muitos cursos de 3.º ciclo) então não haverá aqui problema com o congelamento das ditas propinas.

"A lei como está é equilibrada. Devia, sim, fazer-se uma revisão profunda das regras das bolsas de estudo e apoiar mais quem mais precisa em vez de congelar propinas."

A lei até pode estar equilibrada, mas não é cumprida. Não é cumprida quanto ao financiamento das instituições através de uma fórmula; uma fórmula publicada, em nome da transparência, que deve ter em conta fatores de qualidade. A última foi publicada em 2006. Isso mesmo, há dez anos. Depois foi sendo alterada em folhas de cálculo sucessivas. E depois ... desapareceu. A ser agora reaplicada implicaria profundas alterações e traria à luz situações provavelmente insustentáveis para algumas instituições. E então o Governo não aplica a Lei, a Assembleia da República não a altera, as Instituições não a reclamam.

"Quando comparamos o custo anual total dos estudantes (custo de educação e custo de vida) com o valor da mediana do rendimento em Portugal, vê-se que esses custos assumem cerca de 65 % do valor da mediana do rendimento anual. Enquanto que esse valor no Reino Unido é de 62% e na Alemanha ronda os 28%. Ou seja, para uma família portuguesa é muito mais difícil do que para uma família alemã suportar os custos de um filho a estudar no ensino superior."

Sim. Os alemães ganham bem mais. E também não têm que suportar propinas. As tais que não se quer congeladas em Portugal, para poderem assim, talvez, continuar a aumentar.

(1) http://notasdasuperficie.blogspot.pt/2014/01/o-mito-da-especializacao.html
(2) http://sol.sapo.pt/artigo/525114/congelamento-das-propinas-causaria-danos-ao-ensino-superior

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