domingo, 21 de julho de 2024

De chapéus, suspensórios e modas

Chapéus há muitos
Celso Pinto de Carvalho
CC BY-SA 3.0
, via Wikimedia Commons











O Governo quer carregar no acelerador da economia. O Governo quer mais empresas inovadoras. O Governo quer alterar o Estatuto de Carreira de Investigação Científica e do Estatuto do Docente para permitir aos investigadores e docentes em exclusividade serem membros dos órgãos sociais ou acionistas de startups que resultem dos seus projetos de investigação. Está escrito no programa Acelerar a Economia.

Antes de abordar as questões que considero fundamentais, importa aclarar o conceito de exclusividade a que esta proposta se refere. De um modo simplificado, os docentes e investigadores em instituições públicas de ensino superior podes estar enquadrados em dois regimes base, dedicação exclusiva e tempo integral. O que os distingue não é o número de horas contratuais, iguais em ambos os casos, mas a renúncia, no caso da dedicação exclusiva, ao exercício de qualquer função ou atividade remunerada, pública ou privada. E tal renúncia é acompanhada por uma compensação, que é materialmente significativa: um salário superior em 50% a um docente ou investigador em categoria equivalente mas em regime de tempo integral, ou seja que pode auferir rendimentos de outro tipo de atividades.

Examinando a exclusividade mais de perto, verifica-se que a renúncia é, afinal, parcial, e não absoluta. Diria mesmo generosa, uma vez que permite vários tipos de remunerações adicionais. É o caso da realização de conferências, palestras, cursos breves e outras. Mas também da participação em avaliações e em júris em outras instituições, prestação de serviço docente em instituição de ensino superior públicas (com algumas limitações), ou até no âmbito de projetos da própria instituição. Ainda assim, podemos considerar que, na maioria dos casos, se trata de atividades esporádicas, irregulares no tempo, e maioritariamente acessórias.

A proposta do Governo é passar incluir na lista de exceções permitidas a participação em órgãos sociais ou como acionistas de startups que resultem dos seus projetos de investigação. Que são também projetos das suas instituições, acrescento. E, na sua maioria, financiados por dinheiros públicos, acrescento ainda.

Vamos então à proposta.

A documentação que consultei no portal do Governo não continha informação de suporte a esta medida. Nada sobre as áreas, número e papel das empresas com origem em instituições de ensino superior, nada sobre o eventual papel "dissuasor" do atual regime de dedicação exclusiva, nada sobre os resultados esperados, para além de uma alteração de "contexto". Não me parece que resulte de um estudo. Poderá resultar de uma crença. Ou, no pior dos casos, da pressão de uns quantos "empreendedores" avessos ao risco. 

A proposta desvirtua o conceito de exclusividade existente. Desde logo porque a dedicação a uma empresa de criação própria, não é um compromisso esporádico, mas antes uma relação de longo prazo. Depois, porque se trada de uma relação na esfera privada, e não na esfera pública. Assim, ficam as perguntas: Porque é necessário este estatuto de proteção individual, contranatura? Porque é que os docentes-empreendedores, criadores de empresas com elevado potencial acelerador da economia, não transitam para o regime de tempo integral, podendo assim auferir outros valores com origem nas suas empresas? Porque é que, em alternativa, as instituições e os docentes-empreendedores não alienam os resultados da investigação a empresas e investidores privados?

É aqui que entram os chapéus, vários. Do docente e do empresário. Do público e do privado. Do orientador de alunos e do patrão. Do recetor de fundos e do investidor. Chapéus diferentes para a mesma cabeça e para um mesmo fato, uma vez que é a mesma investigação que se encontra de um lado e do outro. Ou pelo menos é indistinta, criando zonas cinzentas que abrangem pessoas, tempo de pessoas, recursos materiais, acesso a recursos digitais, intangíveis. Dando margem à impressão, ou não só, de gastos públicos para ganhos privados. Difíceis de separar, difíceis de escrutinar. Sobretudo porque sei, por conhecimento profissional, quanto o conceito de “conflitos de interesse” parece alheio, diria mesmo alienígena, a muitos, que não a todos, académicos e investigadores. Isso só acontece aos outros.

Mas há outros adereços, para além dos chapéus, nesta moda dos nossos dias. Cintos, coletes, redes, air bags e até paraquedas. Podem conhecê-los por outros nomes. Cursos em empreendedorismo, para várias idades e até aos doutorandos. Omnipresentes. Valorizados. Considerados quase imprescindíveis. A fazer lembrar o exemplo da formação em sustentabilidade. Do berço à idade adulta. Apoios para estágios em empresas. Apoios para doutoramentos em empresa. Apoios para a contatação de doutorados. Apoios à incubação e à aceleração. Agora apoios à criação de empresas privadas por servidores públicos em regime de dedicação exclusiva. 

Sim, são medidas diferentes com objetivos diferentes e, na origem, com destinatários diferentes. Mas em determinados “ecossistemas” torna-se possível ir navegando, durante muito tempo, durante demasiado tempo, à bolina do sopro dos estímulos. À semelhança do que se dizia da agricultura em finais do século passado. À semelhança do que se pode dizer de parte da investigação nos nossos dias.

Esta proposta insere-se nesta lógica. Transitando entre o melhor de dois mundos. Promovendo o empreendedorismo sem risco. Sem o risco de escolher.

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