terça-feira, 14 de abril de 2020
Primeiro andamento, Rallentando: O mundo encolhera
O mundo encolhera. Não de repente, não de uma só vez, não com estrondo. Começou bem longe, a Oriente, extremo na geografia e no significado. Estremecendo e parando, contraindo-se, aproximando-se. Sabíamos que também aqui encolheria, mas isso não bastou para que estivéssemos preparados.
Os mundos e as coisas, de vez em quando, encolhem. Já vira isso há anos, na Instituição. Também ela se tinha contraído, de tal forma que as pessoas pareciam ser menos, os grandes planos reduzidos a tarefas desligadas, os assuntos mais rarefeitos, as rotinas esbatendo o tempo, os pontos de contacto corroídos. Encolhera a tal ponto que parecia ser mais pequena do que eu, e eu, sendo maior do que ela, já não cabia do lado de dentro, mas apenas do lado de fora.
Mas agora era diferente. Não me parecia estar do lado de fora do mundo, portanto devo ter encolhido com ele.
Os países deixaram de ser um contínuo, em que as fronteiras nem sempre tinham significado, para voltarem a ser fragmentos. As viagens cessaram, e ir lá fora deixou de ser possível, sendo também impossível ir para fora cá dentro. O mundo tornou-se país, o país tornou-se cidade, a cidade tornou-se bairro, o bairro tornou-se casa. A casa, para além de casa, tornou-se local de trabalho, restaurante, mercearia, cinema, palco, livraria, pousada, ginásio e salão de jogos. O terraço tornou-se observatório, serra e praia. A televisão e o computador assumiram-se como as janelas para o mundo, permitindo alternar entre realidade e ficção com um simples carregar de botão, ou um rápido deslizar sobre as teclas. Janelas seletivas, de ampliar, diminuir, distorcer. Ficção imitando a realidade. Realidade imitando a ficção. Mundo plano, sem tacto, sem cheiro, selecionado por outros, contado por outros.
Dizem que é uma guerra, mas não me parece, eu que não estive em nenhuma. De guerras, passadas e presentes, saberão outros. Daquelas guerras, que deixaram de ser notícia no mundo da televisão, e onde se morre porque alguém mata, ou porque tudo falta. Aqui, a dita linha da frente pode estar em cada um de nós. Aqui, de onde escrevo, continua a haver luz, água e gás, telefones e internet. Não há, por agora, racionamentos. Não há mobilizações gerais, como naquela guerra que há pouco fez cem anos, dita a Grande, e depois a Primeira, mas paralisações, suspensões, ou reduções. Aqui, o inimigo não saberá sequer que é inimigo.
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2 comentários:
Felicito-o, Miguel, pelo texto inspirado (tal como já nos habituou!) que a actual situação lhe sugeriu.
Também nunca estive em nenhuma guerra (excepto durante 2 anos, confortàvelmente sentado a uma secretária, emitindo pareceres sobre propostas de fornecimento de equipamento militar), mas diz quem sabe que, uma das piores coisas durante um conflito (militar, ou não), é não podermos ver a cara do inimigo!....
Carpe diem.
Muito obrigado Professor :) Apesar de às vezes os textos se irem escrevendo, quase sozinhos, em pensamentos, é sempre bom saber que são lidos! Abraço.
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