sábado, 25 de abril de 2020

Terceiro andamento, Largo: O mundo afastou-se











Levantei os olhos do computador e da secretária, e espreguicei-os através da janela. Do lado de lá via os campos, sob o sol filtrado pelas nuvens, e, mais longe, a serra. Uma vista que se foi tornando habitual, a pouco e pouco, desde aquela altura em que trocara a cidade junto ao litoral por esta terra do interior.

Não fora uma decisão para mudar de vida, perto dos sessenta, nem por uma questão de poupança, ou sequer de acesso a apoios de repovoamento. Pelo contrário, os preços no interior tinham subido muito, em movimento quase simétrico com a descida que ocorria nas grandes cidades. Fora, sobretudo, pela necessidade de afastamento imposta por estes tempos.

O meu olhar voltou para dentro, e eu com ele, pousando sobre o teclado que aguardava, pacientemente, pelos dedos. O trabalho, afinal, quase não sofrera alterações com esta mudança. Continuava a ser feito à distância, como naquele outro tempo, através de trocas constantes de mensagens, reuniões periódicas através dos écrans, receção e envio de documentos, análises de dados, produção de relatórios. Ganhara algo, no entanto, agora que este forma de trabalho passara a ser a norma para muitas atividades: a gestão do meu tempo, apenas em função dos objetivos e dos prazos estabelecidos. Podia, por isso, trocar uma manhã ou uma tarde de escritório, por um passeio pelos trilhos, para saborear o sol ou a chuva, e regressar ao computador à noite ou durante o fim de semana.

Como eu, muitos outros tomaram o caminho do interior, em busca de sítios mais pequenos. Foi o tempo da mudança, não de regresso a um mundo que já não era, mas para a frente, ou para o lado, ou para cima, para uma qualquer outra direção. Construíram-se casas, recuperaram-se campos, criaram-se serviços, instalaram-se escolas e hospitais, vieram as empresas. Sem replicar as grandes cidades de outrora. Dando uso a estradas pouco habituadas a este movimento. Estendendo-se pela paisagem. Trocando as economias de escala por uma nova escala da economia. Tecendo uma nova rede, larga, espalhada, afastada, viva!

As cidades, essas, esvaziaram-se, perdendo ar como um balão. Sem ficarem desertas, ajustaram a sua dimensão, e achataram, ganhando espaços vazios no que antes eram torres preenchidas. As casas que ficaram vazias foram sendo ocupadas, não por novos habitantes que afluíam às cidades, como antes acontecia, mas por quem antes não tinha casa e, principalmente, pelos que, ficando, procuravam a distância necessária. Outras zonas ficaram apenas ao abandono, permitindo o regresso da natureza, definindo os novos limites da cidade.

As pessoas, essas, tinham mudado, reflexo daquele outro tempo, que se prolongava por este adentro. Mantinham uma distância entre si, definida pela ciência, pelos limites da ciência, pela experiência passada, e pelo receio ou pela prudência. Porque a possibilidade de surgir “The Big One” continuava no pensamento de todos. Davam abraços de longe. Trocavam de passeio, para reduzir os cruzamentos de perto. Esperavam, ordeiramente, em filas espaçadas. Usavam máscaras, ou até fatos inteiros de proteção se a situação o requeria. Não entregavam coisas de mão em mão: umas pousavam-nas, outras recolhiam-nas. Os testes eram frequentes. Os movimentos controlados. As quarentenas obrigatórias, prolongando os tempos de deslocação. Os isolamentos locais habituais, sempre que apareciam novos casos.

Volto a esta sala, com janela para a serra. O mundo afastou-se, mas não parou. As pessoas mudaram, mas as proximidades mantêm-se. Os ritmos são outros, mas alguns hábitos são os mesmos. Estamos em maio, as férias de Verão estão cada vez mais perto, e vou voltar a mergulhar no mar! Ganhara uma das vagas possíveis, no sorteio anual que permite evitar as concentrações de outrora.

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