Não estava propriamente nos planos escrever, nesta altura, sobre as Universidades. A volumosa biografia na mesa de cabeceira ainda vai a meio, as solicitações noutros domínios têm sido várias, e o Verão convida a outros olhares, mais afastados dos temas do dia a dia. Mas a leitura de um jornal suscitou reflexões, estas conduziram à escrita, e este blog, que continua a existir, assegura o registo e a partilha.
O texto culpado é um artigo de opinião intitulado A universidade portuguesa e o futuro: 10 teses e uma visão comum, subscrito por todos os dirigentes máximos das instituições universitárias públicas, concordatárias e militares, e publicado no Expresso de 8 de agosto, com o mote jornalístico Reitores das universidades assinam apelo comum.
Reflexões em duas fase. Primeiro, o contexto. Na segunda parte, as 10 teses.
Nota: trabalhando na Universidade de Aveiro há duas décadas, desempenhei funções de apoio direto à formulação e implementação de políticas institucionais entre 1999 e 2016, com o inerente acompanhamento próximo das políticas de ensino superior.
Parte I - O contexto
Um artigo de opinião, no principal semanário do País, em pleno mês de agosto, da autoria de um coletivo de dirigentes institucionais, é um ato politico. Um ato com objetivos e destinatários, ainda que não sejam, nem uns, nem outros, explicitamente referidos. Um ato que permite várias análises e interpretações, baseadas na palavra lida, que pode ser diferente da palavra escrita, e no seu contexto. Esta é a minha leitura.
O universo abrangido. Não se trata de um texto de dirigentes representativos do ensino superior português no seu todo, uma vez que não inclui o ensino superior privado nem o ensino superior politécnico. Trata-se, como referi, de um artigo subscrito pelos dirigentes máximos das instituições universitárias públicas, concordatárias (Universidade Católica) e militares (Instituto Universitário Militar), ou seja por todos os membros que integram o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP).
A autoria. Podendo parecer uma mera subtileza, ou uma questão de somenos, o texto é subscrito individualmente, em nome próprio e com designação das instituições, pelos dezasseis dirigentes, em lugar, como era mais comum, de uma posição do CRUP. Esta diferença assegura uma personalização do ato, com rostos por detrás do texto, com nomes das instituições, que na maioria dos casos evocam as próprias regiões onde se situam, induzindo assim um efeito de proximidade nos leitores e de abrangência nacional e, talvez mais importante, transmitindo um sentimento de unidade e de unanimidade. Uma posição de um órgão colegial, certamente desconhecido de muitas pessoas, esconde, frequentemente, profundas divergências internas, encerra um certo grau de anonimato e tem uma conotação, sem dúvida, de índole mais corporativo.
O momento. Porquê agora? Porquê em agosto, este mês normalmente diferente para muitas pessoas, de férias para uns, de mais trabalho para outros, de uma agenda política e mediática mais reduzida? Qual a urgência? No domínio do ensino superior público, agosto, mês de transição entre anos letivos, está associado a dois processos de importância elevada: o concurso nacional de acesso ao ensino superior e os trabalhos de preparação do orçamento de estado para o próximo ano.
O concurso nacional de acesso ao ensino superior deste ano decorre num quadro dominado pelos efeitos da COVID, com incerteza quanto à evolução da pandemia e, consequentemente, ao modo de funcionamento de cursos e aulas. Assegurar a capacidade de funcionamento adequado, quanto aos conteúdos e métodos, e em segurança, e estabelecer uma relação de confiança na instituição, é fundamental para futuros e atuais estudantes.
Por outro lado, também o orçamento que aí vem será fortemente condicionado pela crise despoletada pela reação à pandemia, pelas medidas de compensação e de recuperação, e pelos avultados fundos que hão-de chegar através das medidas específicas de apoio acordadas na União Europeia. E, como sempre acontece nestes casos, competição interna pelos fundos não irá faltar, entres instituições, associações, regiões, ministérios, ministros!
Os objetivos. A introdução e as dez teses dedicam-se a sublinhar a importância da Universidade, colocada já semanticamente "no futuro", ou a caminho dele, como é reiterado inúmeras vezes ao longo do artigo, procurando explicitar algumas faceta ou características dessa universidade por vir.
Mas dos potenciais objetivos parece ficar mais claro, quando juntamos as partes iniciais e finais do texto, saltando por cima das teses: "Da universidade depende a possibilidade de Portugal acontecer e ter futuro." (...) "[A universidade do futuro] deve ser dotada dos recursos imprescindíveis ao desenvolvimento da sua missão. (...) Deve desenvolver a atividade no âmbito de um quadro legislativo estável e adequado, que promova a autonomia e responsabilização. Só assim (...) poderá continuar a assegurar o seu papel vital.".
Há, portanto, duas linhas que aqui se evidenciam, e onde talvez o jornalista tenha visto o "apelo" a que o cabeçalho do artigo alude: ter os recursos imprescindíveis e um quadro de promoção da autonomia. Falta aqui clareza. Começando pelo final: promover a autonomia.
A autonomia das universidades face ao Estado tem muitas vertentes - estatutária, pedagógica, científica, cultural, administrativa, financeira, patrimonial e disciplinar -, e não menos gradientes, uma vez que, não se trata de ter ou não ter autonomia. E, portanto, era preciso, nesta designada visão comum, definir qual a autonomia que se preconiza, se é mais que a atual, ou se a existente se encontra ameaçada.
De modo similar, quanto aos recursos, é preciso caracterizar o que são os recursos "imprescindíveis", e qual é a situação atual. Normalmente, isto significa querer mais recursos. Mas aqui entra ainda uma outra outra distinção fundamental: a Universidade, como instituição coletiva, não significa o mesmo que a soma das universidades atualmente existentes. Aliás, sem por em causa a continuidade da Universidade em Portugal, em tempos idos, o atual Reitor da Universidade de Lisboa defendia uma redução significativa do número de universidades em Portugal. E tivemos também a apologia da concentração, das fusões, dos consórcios e das ofertas de formação regionalmente coordenadas. As modas foram efémeras e agora estaremos na fase em que todas as instituições (ou quase todas) serão indispensáveis. Em todo o caso, falar de recursos para o ensino superior, sem abordar a lógica e méritos de repartição dos mesmos pelas diferentes instituições, o que terá o condão de esbater unanimidades, ou aludindo apenas a recursos "imprescindíveis", é manifestamente insuficiente em termos de direção.
É provável que o objetivo primordial seja traçar aqui um pano de fundo para futuras reivindicações em sede de orçamento, visando a obtenção de maiores recursos, ou pelo menos evitando uma diminuição dos mesmos. E procurando, também, assegurar benefícios em termo de autonomia, ou evitar limitações, em que a lei orçamental tem sido abundante.
Os destinatários. Há vários destinatários possíveis, em simultâneo. A opinião pública, que se pretende sensiblizar e manter do lado do desenvolvimento, do futuro e, assim, do papel das Universidades. O Ministro da tutela, tendo em vista a negociação orçamental que se aproxima, em duplo sentido: pressionando-o diretamente, por um lado, e fornecendo-lhe argumentos para esgrimir em Conselho de Ministros, ou pelo menos face ao Minsitro das Finanças. O Governo como um todo, ou o Primeiro-Ministro em particular, acentuando o papel das Universidades para um futuro com mais peso do conhecimento. Os vários partidos, porque o Governo é minoritário. O Presidente da República, que é sempre um órgão a que se apela, discretamente ou abertamente, como recurso.
Continua na Parte II.
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