Reflexões em duas fases. O contexto, na primeira. As teses, nesta segunda.
Nota: trabalhando na Universidade de Aveiro há duas décadas, desempenhei funções de apoio direto à formulação e implementação de políticas institucionais entre 1999 e 2016, com o inerente acompanhamento próximo das políticas de ensino superior.
Parte II - As teses
Ainda a antecedê-las, o mote reforçado "Da universidade depende a possibilidade de Portugal acontecer e ter futuro.". Diria que futuros há muitos, em aberto e, por definição, por traçar. E para o futuro que há-de vir será o resultado da contribuição de muitas componentes, universidade incluída mas não exclusiva. Mas passemos às teses. Para quem não leu o artigo, vale a pena resumi-las aqui, transcrevendo o que no jornal estava a negrito, e que era, em cada caso, seguido por curto parágrafo explicitando o conceito:
- A universidade do futuro existe para fazer acontecer, e não para esperar o que lhe acontece.
- A universidade do futuro é colaborativa e compete em ambiente supranacional.
- A universidade do futuro será estúdio e não fábrica, um espaço de criatividade e não de repetição.
- A universidade do futuro será sempre repositório de memória cultural.
- A universidade do futuro é cosmopolita, um espaço de inclusão e respeito pela diversidade.
- A universidade do futuro é uma instituição livre e plural.
- A universidade do futuro não tem muros, está aberta à sociedade e aos seus desafios.
- A universidade do futuro promove um futuro melhor.
- A universidade do futuro é humana num contexto tecnológico.
- A universidade do futuro é uma força transformadora.
Desta vez, ao contrário de outras, resisti a pegar no escalpelo e dissecar o texto, camada a camada, para tentar melhor compreender este corpo, e descortinar ligações e intenções. A primeira impressão que o texto me causou foi de estranheza, até mesmo desconforto, meio vago, assim ainda por definir e por explicar. Soube a pouco.
Será o estilo, e a repetição exaustiva, deliberada, da expressão "A universidade do futuro"? É possível. O facto de só se falar no futuro, e nunca na universidade do presente, suscita novas interrogações: a universidade do presente já é a do futuro, já coloca Portugal num futuro, e teme-se um retrocesso? Ou, a não ser assim, a universidade do presente nada ou pouco encerra destes motes? Apregoa-se a manutenção, uma transformação, um incremento? E o que é preciso para passar do presente ao futuro, são apenas os "recursos imprescindíveis", "estabilidade legislativa" e "autonomia"? Sim, o estilo talvez dificulte a mensagem e desfoque a atenção.
Mas não é apenas isso. O desenvolvimento das ideias nem sempre está bem alinhado com os temas. Um exemplo apenas. "A universidade do futuro promove um futuro melhor". Uma frase ambiciosa, que permite esperar muito, em muitos domínios da nossa vida comum. Mas que se traduz em "A universidade orienta-se para proporcionar a todos um futuro profissionalmente estimulante e para promover a capacidade de aspirar." A ideia passou pelo funil da universidade profissionalizante, longe do ideal do desenvolvimento integral do indivíduo, ou do contributo para a participação crítica e ativa das pessoas.
Serão, também, os motes selecionados? Experimentei trocar, nas 10 teses, "A universidade do futuro" por "A empresa do futuro". Também funciona em praticamente todas, não é verdade? E, também aqui, estes mesmos motes estarão já em muitas empresas do presente.
Ainda, sobre as teses, continuo a resistir à tentação de as percorrer em detalhe, uma a uma. Ao invés, decidi escolher três delas: a Ausente, a Incompleta e a Chocante.
A Ausente, não foi, obviamente, incluída. E considero que é, provavelmente, um dos redutos quase exclusivos das Universidades, em particular e em Portugal, públicas. Sei que não seguirá a corrente, nem apela necessariamente à simpatia pública ou de muitos mecanismos de financiamento. Percebo que para alguns pareça elitista, um privilégio ou mesmo um luxo. Mas é indispensável para o futuro, diz-nos o presente e a histórias das civilizações e da tecnologia. Refiro-me à criação do conhecimento pelo conhecimento, aquele que alarga a nossa visão sobre, aquele que permite que outros, anos, décadas ou séculos depois encontrem, por vezes, utilidades impensáveis. Sem séculos de pessoas a observar os céus e os astros, enquanto outras tentavam penetrar nas profundezas da terra, não tínhamos hoje, por exemplo, esta comunicação global, baseada em satélites e no uso de materiais raros.
A Incompleta, porque assumindo o papel transformador da universidade, não evidencia o principal agente da transformação. Sim, A universidade é fundamental na transformação da sociedade, ou, pelo menos, tem um papel relevante e próprio nessa transformação. Mas não é uma influência direta da Universidade, ou, pelo menos, não é essa a maior influência. A principal transformação é indireta e diferida no tempo. A principal transformação depende de quem estudos e investigou numa universidade, mas já lá não se encontra. A principal transformação dependerá das dezenas de milhares de pessoas que anualmente se graduam, que vão desenvolver a sua atividade profissional noutras instituições, públicas ou privadas, que vão tomar decisões com visões de futuro, que vão ser afetados por decisões de outros, que vão participar ou ser passivos. É preciso assumir explicitamente a importância transformadora deste papel indireto, e por essa via consagrar a importância interna, no seio das próprias universidades, da componente ensino, com todas as implicações que isso acarreta. Por uma questão de coerência.
A Chocante, na lista das teses associada ao mágico número 7. A universidade do futuro não tem muros, está aberta à sociedade e aos seus desafios. Sim, são questões de semântica, porque trata-se aqui de significados, do que se quer dizer, do que se escreve, do que pode ser lido. Sim, são questões sobre mundos que continuam separados. Sim, são questões preocupantes, que me chocam, porque, pelos vistos traduzem uma visão do futuro, que se vem dizendo já ser passado. A universidade que se diz "aberta" à sociedade e aos seus desafios, coloca-se do lado de fora da sociedade. Diz-se aberta, por benevolência, estratégia ou convicção. Pouco importa. São uns e os outros. Como se os recursos não fossem partilhados, como se os problemas não fossem de todos, como se observador e observado não fossem o mesmo. Como se as pessoas saíssem da sociedade, para entrar, por uma porta aberta, na universidade, e depois regressassem à sociedade, como se os docentes e investigadores mudassem completamente de fato, oscilando entre o ser em sociedade e o ser na universidade. É verdade que em muitos aspetos, até pelas próprias regras por que se regem, as universidade continuam a ser um mundo à parte. Mas esta é a visão de uma universidade retiro, ou retirada. No século XXI e para o futuro. Pode não ser uma torre de marfim ou não ter muros. Mas parece continuar a ter as barreiras mais difíceis de ultrapassar, as mentais.
Sim, as razões do desconforto sentido passam por tudo isto.
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