sábado, 30 de agosto de 2025

Não binário

 

Universidades e Politécnicos. Ensino universitário e ensino politécnico. Docentes universitários e docentes do politécnico. Um sistema organizado, ordenado, conforme. Binário. Zeros e uns. Preto e branco. Cara e coroa. De explicação simples. De leitura fácil. De qualidades elogiadas, pela esfera política, académica ou sindical. Enredando-se depois em nuances semânticas para distinguir o que cabe a uma parte e à outra, para justificar o território conquistado ou em disputa, para competir pelos alunos. Palavras e atos contradizendo-se, até, como diz o Conselho Nacional de Educação: "No país, várias ações que, na realidade, contribuem para a convergência num sistema uniforme, têm sido acompanhadas por declarações retóricas a favor da manutenção do sistema binário." 
Propõem-se alterações. Mudanças de designação. Adaptações de frases. Tento acompanhar a discussão, mas perco-me. Parece-me anacrónica. Procura-se perspetivar o futuro olhando para o passado, como se este fosse o presente. Leio os Reitores: "Generalizar a designação “universidade” a todas as instituições de ensino superior, independentemente da sua dimensão, grau de especialização, número de ciclos de estudo ou intensidade da atividade científica, desvirtua o próprio conceito de universidade." Sim, os nomes são importantes. E trazem-se à memória, uma vez mais, a escrita de Isaac Asimov. Em "Spell my name with an S", a carreira do físico nuclear Marshall Zebatinsky encontrava-se estagnada. À falta de melhor, consultou um numerologista, que o aconselhou a mudar a primeira letra do seu nome para S, S de Sebatinsky. Mas para o que acontece depois, o melhor é ler a história.
Mas voltemos às universidades e politécnicos, no ano de dois mil e vinte e cinco, e aos anacronismos. Universidades, ensino universitário, certo? Não, nem por isso! Neste momento, a maioria das universidades públicas oferece cursos de ensino politécnico. Para a raiz da discussão, nomes incluídos, pouco importa se são oferecidos em escolas politécnicas integradas em universidades. São ofertas de uma universidade, frequentadas por alunos que terão um diploma com o nome dessa universidade no diploma. Poder-se-á pensar que são cursos com pequena expressão relativa, em áreas específicas, como a enfermagem. Sim, mas não só. É muito mais do que isso. Tanto que na Universidade dos Açores representam cerca de 15% dos estudantes, em Aveiro e na Madeira quase um quarto (23%), e no Algarve quase metade (46%). Afinal, a expressão Universidades Politécnicas pode ter muito que se lhe diga.
Em rigor da verdade, a expressão sistema binário figura na lei associada, em primeiro lugar, ao ensino propriamente dito, e não às instituições, embora frequentemente confundido ou invertido: "O ensino superior organiza-se num sistema binário, devendo o ensino universitário orientar-se para a oferta de formações científicas sólidas, juntando esforços e competências de unidades de ensino e investigação, e o ensino politécnico concentrar-se especialmente em formações vocacionais e em formações técnicas avançadas, orientadas profissionalmente."
Pelo menos os cursos universitários e politécnicos serão diferentes, certo? Pois... nem por isso... Claro que há cursos apenas oferecidos no universitário e outros no politécnico. Mas depois há os outros, com a mesma designação, mas em dois subsistemas diferentes, e de uma forma muito mais disseminada do que se poderia pensar. Administração Pública, Agronomia, Animação Sociocultural, Arte Plásticas, Bioengenharia, Biotecnologia, Ciências e Tecnologias do Ambiente, Conservação e Restauro, Contabilidade, Design,... E ainda só vou na letra D! Simples? Legível? Não! 
E, depois, podemos ainda falar dos docentes, dos requisitos de acesso e de progressão, das propostas de carreira única, quem sabe. Mas isso decorrerá do restante. Discutir o sistema de ensino superior com base numa ficção binária, a anos-luz da realidade, não vale a pena. Tal deriva seria até, certamente, chumbada numa qualquer defesa de projeto ou tese, no universitário ou no politécnico. Acredito que tal possa servir para a defesa de visões parciais, de interesses instalados, ou mesmo na convicção da sua necessidade para a sobrevivência institucional. Mas isso não contribuirá para o desenvolvimento de um sistema de ensino superior mais saudável.

domingo, 24 de agosto de 2025

Notas breves sobre as quebras no acesso ao ensino superior

Está aí mais um ano letivo. Saíram os resultados da primeira fase do acesso ao ensino superior. Com quebras variadas a chamarem a atenção: no número de candidatos e de colocados, nas instituições de ensino politécnico, no interior, em Aveiro, em algumas áreas. Neste momento apenas é possível analisar alguns números, em valor absoluto e variação anual. E aventar, ou inventar, causas e explicações. Só mais tarde será possível fazer outro tipo de reflexão, quando ficarem disponíveis mais dados, sobre a origem e destino dos estudantes, sobre as razões das suas escolhas, declaradas e não meramente intuídas.
Candidatos. Um regresso aos níveis de há uma década atrás. Menos dez mil do que no ano anterior. Uma quebra súbita de 17% à entrada do sistema. Uma descida continuada desde 2021, ano recorde. Uma quebra de quase 25% em relação a esse valor. Uma tendência num sistema instável, acelerada ou diminuída pelas regras de acesso em constante mutação, como o número de provas ou o seu peso relativo, condicionada pela demografia, indissociável da economia das famílias. Um quadro que requer um planeamento diferente. Impondo uma participação ativa na definição e estabilização das regras. Exigindo descartar a ilusão irresponsável de um crescimento eterno. Exercícios de prospetiva que colidem com a gestão ano a ano.
Vagas. Mais cinco mil do que há uma década. Um pouco mais do que no ano anterior. Um valor que regista pequenas flutuações nos últimos cinco anos ficou, subitamente, muito acima do número de candidatos. As regras estabelecidas para a fixação do número de vagas estão desenhadas, sobretudo, para impor limites ao crescimento autónomo de cada instituição, que poderia conduzir a uma ainda maior concentração de estudantes em redor das duas principais áreas metropolitanas. A quebra não foi prevista. O sistema não se adaptou. 
Colocados. O número mais baixo desde 2016, deixando por ocupar uma em cada cinco vagas, 20%. Resultado com impacto assimétrico nas diferentes regiões, instituições, áreas de ensino e cursos.
Politécnico. No seu conjunto, as instituições de ensino politécnico foram as que mais perderam, com  23% de colocados a menos do que no ano anterior, mas com quebras bem mais acentuadas na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril (51%), Politécnico da Guarda (47%), de Tomar (45%), de Santarém (43%), de Beja (50%). Matéria para a reflexão quando se discute, uma vez mais, o sistema binário, que na realidade já não o é há muito tempo em termos de instituições, as missões diferenciadas e as assimetrias do território.
Aveiro. De entre as Universidades, a de Aveiro foi, talvez com surpresa, a mais afetada em termos absolutos, com menos 371 colocados do que no ano anterior, de longe a perda mais elevada, e em termos relativos também, se excetuarmos as Universidades insulares, com uma quebra de 16%. Talvez por ser uma das universidades com mais ensino politécnico. De facto, a quebra de colocados no politécnico da UA foi de 23% e de 14% no ensino universitário. Mas isto não explica tudo. A Universidade do Algarve tem ainda mais politécnico e sofreu uma quebra menor, e a quebra no universitário continua a ser bem superior à de outras instituições. Há cursos quase desertos: Meteorologia, Oceanografia e Clima (1 colocado), Geologia (1), Química (3), Ciências do Mar (3), Física (7), Engenharia do Ambiente (7). Outros com muito mais vagas do que colocados, como Biologia ou Engenharia de Computadores e Informática. Talvez por captar alunos numa bacia demográfica mais pequena, mas registando perdas semelhantes à Beira Interior e bem superiores em relação a Évora. Talvez por apresentar um custo de vida elevado, principalmente ao nível da habitação, comprada ou alugada. Talvez por estar entre Coimbra e Lisboa, num ensino superior regionalizado em que a maioria das instituições apresenta ofertas semelhantes. Talvez por questões de prestígio ou reconhecimento de cursos. Talvez por um maior desajuste entre vagas e preferências. Talvez por uma combinação de alguns ou de todos estes fatores.
Da rede. A oferta de cursos não é propriamente gerida. No passado, em determinada altura, foram adotadas medidas para reduzir o número de ofertas, uniformizar designações de cursos, limitar o funcionamento de cursos com poucos alunos. A própria acreditação de novos ciclos de estudos deveria ter em consideração a rede já existente, embora em muitos outros países a liberdade das instituições para criar cursos seja muito maior. O que caminho que vejo ser trilhado regressa à proliferação de cursos, à criatividade de designações e à mimetização dos cursos mais procurados, em busca de mais alunos e de alunos com melhores médias. Veja-se a licenciatura oferecida pela Universidade de Coimbra em Gestão de Cidades Sustentáveis e Inteligentes. Não seria mais apropriado a um mestrado ou especialização? Atente-se na Engenharia Aeroespacial, já presente em Aveiro, Évora, Minho, Porto e Lisboa, em busca dos alunos com notas mais elevadas, em competição também com outros cursos no seio das próprias instituições. Resistindo, ainda e sempre, a estas tendências, o Direito, que não chega ao interior nem a sul do Tejo. Num tempo em que se volta a falar de consórcios ou outras formas de cooperação e de partilha de recursos, por que não transferir alunos de cursos quase inexistentes para instituições que oferecem formações similares? Afinal, o efeito da escola, a experiência universitária e o desenvolvimento de muitas competências não se conseguem com apenas um par de alunos. Numa outra perspetiva, a dos incentivos, o Governo decidiu pagar as propinas a estudantes que frequentem os cursos conducentes ao grau de licenciatura e de mestrado na área de Educação Básica, mediante determinadas condições. Será esta a razão do aumento das colocações nestes cursos? Será suficiente? Será aplicar a outras formações? Será razoável?
Das análises. Falta ainda saber muito, desde logo as verdadeiras causas das opções de cada um, e a matriz de origem e destino dos candidatos e dos colocados. Nessa altura, será oportuno revisitar este assunto. Sendo certo que novas alterações ao modelo de acesso ao ensino superior não deixarão de causar novos efeitos.

domingo, 17 de agosto de 2025

Politicamente incorreto








Verão. Férias. Deixei a realidade do lado de fora. Por luxo, necessidade ou inconsciência. Ainda assim chega até mim em pequenas doses, escorrendo pelas frestas, em fragmentos, atenuada. Feita mais de palavras lidas do que de sons e imagens. Palavras lidas, palavras escritas. Escritor, propósito, texto. Leitor, interpretação, reflexão, crítica.
Vejo uma notícia. Leio uma declaração. Com data. 31 de julho. Publicada numa página da internet uns dias depois, já em agosto. Declaração conjunta CRUP/CCISP – Ensino Superior português reafirma compromisso com a paz, a dignidade humana e o diálogo. Os autores estão, desde logo, identificados. São os órgãos que representam as Instituições Públicas, Concordatárias e Militares de Ensino Superior, que não todas as instituições de ensino superior portuguesas. 
A forma adotada é a de uma declaração, conjunta, conjugada, acordada. Já participei em escritas dessas, numa das minhas outras vidas. Sei como é difícil conjugar uma escrita sintética com a abordagem de temas complexos. Neste tempo de atenção estilhaçada, a capacidade de atração é inversamente proporcional ao tamanho do texto. Lembro-me disso ao escrever aqui, mas pouco importa. Procurar evitar interpretações erróneas. Decisões. O que manter e o que deixar de fora. O essencial e o acessório. O que ficaria bem mas não é imprescindível. Escrever. Cortar. Reescrever. Aparar. Escrita Bonsai.
Interrogo-me sobre o tempo e o propósito da declaração.
Último dia do mês de julho. As instituições de ensino superior entregaram-se à letargia dos dias quentes. Sem alunos, exceto uns quantos com prazos contados. Sem docentes, ou quase. Com menos investigadores. Com menos trabalhadores não docentes e não investigadores, os que ficam mantendo a máquina a funcionar, por vezes com trabalho redobrado. Com espaços vazios. Com espaços fechados. Não será, portanto, uma mensagem para dentro de portas. Será uma mensagem para a sociedade.
Último dia do mês de julho. Parte do país também entregue a férias. Outra parte a trabalhar para quem está de férias. Ainda outros a trabalhar, como sempre, ou apenas porque o seu ano se escoa de forma diferente. Os políticos a banhos. A silly season. As notícias sobre praias e gastronomia. Os incêndios, de novo, sufocando em tons de vermelho e cinza. 
O que seria tão urgente para justificar uma posição pública destas instituições? O que exige uma reafirmação, que não uma afirmação, do seu compromisso com a paz, a humanidade e o diálogo? Estariam estes valores em causa? Ameaçados? De fora? Ou de dentro? A quem se destina, de facto, a mensagem?
Volto à declaração. Quatro parágrafos apenas. Check. Certamente pensados, discutidos, debatidos e aprovados, que isto de reunir umas dezenas de instituições nem sempre é simples. Parágrafos escritos. . Sujeitos, como sempre, a interpretação. Sujeitos, inevitavelmente, à crítica. Afinal o que nos querem dizer? O primeiro, segundo e quarto apresentam estas instituições de ensino superior como espaços abertos e de multiculturalidade, acolhendo estudantes de proveniências e culturas diversas. Espaços de respeito e compreensão. Com a convicção, ou a esperança, de que este seja um contributo para um futuro melhor, à escala global, dentro dos princípios enunciados.
Sim. Há mais gente de origens diversas no ensino superior. Por outro lado, acredito que a vivência do ensino superior representa hoje uma fatia mais mais pequena da vida individual do que já representou. Não só em tempo vivido, mas sobretudo em tempo partilhado. Fruto da própria massificação ou democratização do ensino superior, como lhe queiram chamar, em que este deixou de ser objetivo e destino de vida. Resultado da coexistência e competição quotidiana com muitas outras dimensões da vida. Ampliado pela comunicação omnipresente, ao alcance dos dedos, com gente próxima ou longínqua, conhecida ou desconhecida. Há muitos outros espaços de interação e, de certo modo, a influência do ensino superior no percurso de cada um terá sido atenuada.
As universidades partilham os feitos dos seus antigos alunos. Certamente pela satisfação pelo percurso de alguém que se conhece, ou conheceu, e que, em determinado momento fez parte do dia a dia da instituição. Sem dúvida também para criar um efeito de associação da instituição ao sucesso alheiro, como que reclamando parte do êxito, e assim fortalecer a sua imagem. A mente deambula. Imagino sucessos. Empreendedor, inventor, medalhado, distinguido. Formado na Universidade X. A mente deambula para o tema da crónica. Imagino outros percursos. Títulos que não existirão. Perseguidor. Discriminador. Desumano. Fomentador de conflitos. Criminoso. Criminoso de guerra. Formado na Universidade X.
Mas voltemos à declaração. Falta ainda analisar o terceiro parágrafo. E é aí que vislumbro o verdadeiro propósito da comunicação. É, também aí, que continuo sem encontrar pistas para o momento escolhido. É, ainda, aí que vejo a declaração colapsar e tornar-se desprovida de sentido, falhando em toda a linha em relação aos valores apregoados. 
É com profunda preocupação que assistimos à escalada da violência em Gaza e noutras regiões, ao sofrimento humano que dela decorre e à erosão de valores que deveriam unir a comunidade internacional. A tragédia no Médio Oriente interpela-nos a todos.
Ou seja, é um comunicado obviamente sobre Gaza, o único nome em duzentas e uma palavras, sem assumir ser um comunicado sobre Gaza, mas procurando conforto num conjunto de valores que se aplicam a tantos sítios do mundo neste ano de dois mil e vinte e cinco do calendário que usamos por estes lados. Podia, de facto, referir-se apenas ao que está a acontecer lá. Mas não o faz e refere também, mas sem nomear, outras regiões, como se verá mais abaixo. Fica a sensação de receio de assumir, plenamente, o verdadeiro propósito. Politicamente correto? Não! Absolutamente incorreto... 
Voltemos, por instantes, ao momento. 31 de julho de 2025. Passaram 663 dias desde o 7 de outubro de 2023. Houston B. continuaria, 15912 horas, 954720 minutos, 57283200 segundos, 1,816 voltas ao Sol. Mas isso são leituras de outro livro. A pergunta persiste. Porquê agora? Haverá quem diga que mais vale tarde do que nunca. Haverá quem imagine pressões individuais, de grupo, ou de associação para uma tomada de posição. Haverá quem imagine o voluntarismo de uma instituição, e a impossibilidade de dizer que não de outras. Haverá, talvez, quem tenha juntado outros parágrafos, mencionando a motivação, mas diluindo o propósito de forma a afugentar possíveis críticas. Haverá quem pense no receio de relações em curso, com instituições israelitas, ou até questões de Estado, veja-se a hesitante e contraditória posição do Governo em tempos recentes. Mas vamos ao texto.
É com profunda preocupação que assistimos... 
Bom, ficamos a saber que as instituição que integram o CRUP e o CCISP estão preocupadas, tão só e apenas. Ocorrem-me muitas outras expressões, com cambiantes diversos, para além da preocupação, palavra de uso banal para muitos contextos. Podiam estar horrorizados, ultrajados, indignados. Recorrendo a um estereótipo da expressão inglesa de sentimentos, enquanto a tragédia ocorre, they are deeply concerned
... à escalada de violência ... 
Aqui as coisas pioram, porque a preocupação, profunda, não é com a violência, em consonância com os valores humanistas referidos, mas com a escalada da dita. A hierarquia do horror, qualquer que seja já a fasquia,  um limite entre o que causa preocupação e o outro. Isto sem ser claro qual é a escalada referida, a 31 de julho de 2025, depois de tudo a que já se assistiu, e aquilo que apenas se entrevê, ou imagina, sem testemunhos. Adicionalmente, parece ser apenas uma constatação de factos, a violência por si, sem vítimas, sem perpetradores, sem atores, sem origem.
... em Gaza... 
Eis o único elemento nomeado na declaração, que se transforma assim no seu verdadeiro, e único, propósito. Um local.  
... e noutras regiões, 
Regiões sem nome. Sofrimento sem rosto. Evitando que a declaração seja "apenas" e objetivamente sobre Gaza. Gaza como símbolo do sofrimento de "outras regiões"? Para quem sofre nelas não há símbolo, nem comparação. Qual é o medo afinal? Para quê o subterfúgio? Para quê considerar uns menos dignos de serem nomeados? Porquê a falta de coerência? Uns e os outros, como no filme.  Nós e eles, como na música. Ou ainda como Houston B, que partilhava as páginas do romance com alguém cujo nome a cidade esquecera.  Assim, ao correr dos dedos sobre as teclas, poderia nomear umas quantas regiões. A Síria, que já valeu uma plataforma para apoio a estudantes desse país, iniciativa do Presidente Jorge Sampaio. O Líbano e a Líbia. A Ucrânia e a Rússia. O Afeganistão, hoje inimaginável, que ficou sem imagens e sem voz, sem testemunhas. O Haiti que raramente faz manchetes deste lado do Atlântico. Myanmar, Sudão, Moçambique.  Mais valia terem assumido o verdadeiro intuito da declaração.
... ao sofrimento humano que dela decorre...
Sofrimento presente. Futuros adiados, condicionados. Futuros suprimidos, eliminados, liquidados.  
... e à erosão de valores que deveriam unir a comunidade internacional. 
A comunidade internacional, feita por países. Os países, feitos por pessoas. Valores nem todos partilhados, ou pela menos, não na mesma hierarquia. Como é patente na realidade atual. Como é evidente através da história. Apesar de tudo, há momentos, e regiões, em que a paz, o respeito e prosperidade se instalam e permanecem por períodos mais ou menos alargados. Mas partir do princípio que esses se sobrepõem a tudo, num mundo tão desigual, é pura ilusão. 
A tragédia no Médio Oriente interpela-nos a todos.
Voltamos ao verdadeiro propósito, agora numa expressão um pouco mais alargada: o Médio Oriente. O que impeliu estas instituições, a 4000km de distância do leste do Mediterrâneo, de fazer esta declaração pública. Interpeladas, também elas, irão tomar alguma inciativa? 
Verão. Férias...

sábado, 24 de maio de 2025

Umas eleições para o Conselho Geral



Já por aqui passaram programas partidários, em especial em tempos de eleições legislativas. Desta vez, o olhar é sobre outras eleições e outros programas, tenho como objeto o Conselho Geral da Universidade pública onde trabalho.
Na qualidade de não docente e não investigador a tempo parcial, apenas posso participar, enquanto eleitor, na eleição do único não docente e não investigador desse órgão de governo. No entanto, entendo que o Conselho Geral é, ou deveria ser, mais do que a mera de soma de grupos com diferente vínculo à instituição. E entendo que não há, ou não deveria haver nesse órgão, assuntos do interesse de apenas um dos grupos segregados para efeitos eleitorais (membros docentes e investigadores, não docentes e não investigadores, estudantes). 
Deste modo, o olhar que se segue abrange os programas de candidatura disponíveis na página do Conselho Geral e não outros que possam ter sido divulgados pelas respetivas candidaturas. Dando valor à palavra escrita, que resultou de reflexão e de opções. Palavras que são, naturalmente, sujeitas a interpretações, e, não menos importante, suscetíveis de ser comprovadas ou contrariadas pelos atos.
Claro que um processo eleitoral não é feito só, ou sobretudo, de programas. É feito por pessoas, que se organizaram para discutir, que assumiram a vontade de participar, que irão agir uma vez eleitas, e que deverão prestar contas. Sobre as pessoas terei também opiniões, mas não é esse o foco desta reflexão pública.

Vamos então por partes, e pela ordem em que as candidaturas surgem na página institucional.

Colégio dos Professores e Investigadores. Duas listas. Dentro do habitual. Propício a lógicas de “Uns” e os “Outros”. Escasso, em termos de pluralidade e de discussão. Mas estas duas listas, dois manifestos, dificilmente poderiam ser mais diferentes na abordagem adotada.
UA 2030: Uma Universidade Inovadora, Sustentável e Plural. Leio o programa e não vejo um programa para um Conselho Geral. 
Não reflete sobre as competências do órgão, o seu desempenho passado, o desempenho preconizado ou a sua interação com os outros órgãos da instituição. Não menciona uma das primeiras competências a assumir pelos eleitos, ainda mesmo antes do órgão plenamente constituído: a cooptação das personalidades externas. Também não aborda a vertente supra institucional, seja através da ligação aos órgãos congéneres de outras instituições ou no quadro da eternamente prevista revisão do Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIES). 
Menciona o incentivo à implementação de ações pelos órgãos executivos, mas apresenta um manifesto essencialmente executivo, com é patente nos compromissos enunciados. Promover a implementação de programas, criar condições para desenvolver carreiras, assegurar a manutenção do edificado, garantir o reforço da comunicação, assegurar o fortalecimento de parcerias, desenvolver um plano para as artes e culturas, estreitar a relação com os países africanos de língua portuguesa, estabelecer um balcão único de inovação e parcerias, são alguns dos muitos exemplos.
Paradoxalmente, não refere, sequer, a eleição próxima do Reitor, a um ano de distância, mas que por aí paira há muito, e que é, sem sombra de dúvida, a competência que, infelizmente, mais tem condicionado a generalidade das eleições para os Conselhos Gerais. E é ao Reitor que compete a apresentação dos planos estratégicos e de ação.
Não parecendo, como referi, um manifesto para um Conselho Geral, expressão aliás só referida no cabeçalho e na secção com a visão e objetivos, não explicita ao que vem.

Para mais sobre a ligação entre Conselhos Gerais e a eleição de Reitores ler, por exemplo O ovo, a galinha, a omelete e o empadão, escrito já em 2017 mas que não perdeu a atualidade ou outras reflexões sobre Conselho Gerais.

UA50 – 50 Anos de História, 50 Anos de Ambição. Leio o programa e encontro, sobretudo, uma reflexão sobre a estrutura e o ambiente de governação da instituição.
Há pontos comuns em ambas os manifestos, de que são exemplo as questões do edificado, das carreiras, ou das parcerias. No entanto, estes aspetos e outros de natureza mais executiva são apresentados em segundo plano e de forma matizada, com referência ao papel que neles pode competir ao Conselho Geral. Surge assim como algo contraditório, a referência específica ao reforço das estruturas de apoio à investigação e à cooperação.
No entanto, o foco incide sobre as questões de governança interna, incluindo disposições que estão na esfera estatutária da responsabilidade do Conselho Geral, e um posicionamento face a algumas das preconizadas alterações ao RJIES, abordando aspetos formais, mas também o ambiente vivido e percecionado, remetendo para segundo plano a abordagem para outras áreas de intervenção mais executiva, com matizes pelo papel que nelas pode caber ao Conselho Geral. 
Esta candidatura pretende distanciar-se da habitual ligação entre estas eleições e as do próximo Reitor, escolhendo para isso o realce, a negrito e itálico, que não conta com o "envolvimento de putativo(a)s candidato(a)s a Reitor. Na mesma linha, apresenta-se como um movimento plural e diverso. Neste quadro, será de admitir que, havendo vários candidatos a Reitor, estes eleitos não votem, necessariamente, em bloco.
É dado maior destaque às competências próprias dos eleitos e do órgão. No entanto, a cooptação das personalidades externas é encarada numa perspetiva utilitária, de pessoas ditas influentes para fomentar a competitividade da instituição e diversificar a capacidade de financiamento. Esta tem sido, a meu ver, uma das fraquezas das instituições, e que revelam um défice de real abertura à sociedade. É uma visão de um sentido, de ajudar a ter mais meios, em lugar de uma processo de trazer outras visões para a Universidade, que questionem, que desafiem, que causem desconforto, que façam sair dos muros mentais. Também é referido, e aqui bem, o papel fiscalizador que o Conselho Geral deve assumir e que tem como competência própria.
Curiosamente, esta candidatura optou por apresentar o texto em português e inglês.

Representantes dos Estudantes. Sem informação sobre as candidaturas na página do Conselho Geral. Incoerências de um sistema que para um órgão tem duas comissões eleitorais. Juntos, mas separados.  Talvez por real falta de coesão institucional. Talvez como resultado de cedências ou de poderes adquiridos. Talvez por ilusões de autonomia ou autossuficiência. Talvez por vontade de controlo. Não é de agora. Mas não tinha de continuar a ser assim.  

Colégio dos não docentes e não investigadores. Uma lista. Sem escolha: 
Juntos somos mais UA 
Um manifesto curto, fechado, não passando das questões de "classe", muitas das quais não serão do âmbito do Conselho Geral, não serão sequer do âmbito do Reitor, mas sim do Administrador. Alguns exemplos. Representar os interesses do pessoal não docente e não investigador, formação profissional, mobilidade entre serviços, preocupação sobre a comunicação entre os órgãos e estes trabalhadores e não nenhuma perspetiva transversal, reconhecimento.
É pouco. Não permite vislumbrar o contributo efetivo para questões e decisões transversais à instituição, baseados no conhecimento e experiência própria de muitos não docentes e não investigadores.
De tempos a tempos volta a esta citação, já com vinte e cinco anos, mas não encontro aqui este espírito.
"Yet, ironically, many staff members are far more loyal to the university than students or faculty. In one sense this is because they are more permanent than students and faculty. Students are essentially tourists, spending only a few short years on the campus, and seeing relatively little of its myriad activities. Similarly, many faculty members view their appointments in the university as simply another step up the academic ladder. Their presence at and their loyalty to the institution is limited, usually outweighed by their loyalty to their disciplines and their careers. In contrast many staff members spend their entire career at the same university , although they may assume a variety of roles. As a result, they not only exhibit a greater institutional loyalty than faculty or students, but they also sustain the continuity, the corporate memory, and the momentum of the university. Ironically, they also sometimes develop a far broader view of the university, its array of activities, and even its history, than do the relative short-timers among the faculty and students." (J. Duderstadt, 2000).

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Separação de poderes

 
Governação e Administração.
Separação de poderes.
Leituras cruzadas.

The university is indeed a complex institution, but it need not be complicated. Effective university governance is eminently possible if it is done on the basis of clear principles that reflect the university’s historical evolution and purpose rather than on murky management strategies and ad-hoc muddling through. University governance is difficult not because academic personalities are idiosyncratic (although often they are), or because goals of administration and faculty conflict (although sometimes they do), but because university government is often poorly conceived by those who design it and participate in it.

Separating Powers at the University: Applying Constitutional Law to Internal Academic Governance
Bruce Pardy, Education and Law Journal, Vol. 20, No. 243, 2011.

Yes, I do think there is a real dilemma here, in that while it has been government policy to regard policy as the responsibility of Ministers and administration as the responsibility of officials, questions of administrative policy can cause confusion between the administration of policy and the policy of administration, especially when responsibility for the administration of the policy of administration conflicts or overlaps with responsibility for the policy of the administration of policy.

Pela voz de Sir Humphrey Appleby, em 
The Complete Yes Minister, Jonathan Lynn e Antonhy Jay, BBC Books.