quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

O pior de dois mundos

Publicado no Expresso de 14 de fevereiro.
O Governo quer mudar o processo de escolha dos Reitores das Universidades, acabando com a atual eleição pelo Conselho Geral que, sendo de pequena dimensão, tem sido instrumentalizado por esta finalidade, como os próprios protagonistas comprovam. Em nome da representatividade, o Governo propôs inicialmente uma eleição alargada a todos os trabalhadores da instituição, alunos e antigos alunos (melhor, antigos diplomados, independentemente da sua ligação e por toda a vida!), ainda que com pesos diferentes para cada grupo. Mas o Governo guinou, propondo afinal que o tal Conselho Geral escolha dois candidatos, os quais serão depois votados pela boa da comunidade, relegada assim a uma espécie de 50-50. Um processo mais longo e burocrático, a efetuar em todas as instituições de ensino superior a cada quatro anos. Uma solução incoerente e que nada resolve, a meio da ponte, a lembrar a criação das Universidades-mais-ou-menos-fundação. O pior de dois mundos, a não ser que o Parlamento revele melhor senso.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Quem escolherá o Reitor?

O texto anterior incidia sobre o passado e presente desta matéria. Este é sobre um dos futuros possíveis, aquele que é proposto pelo Governo.
A proposta abandona o modelo “executivo” de eleição por um Conselho Geral reduzido, e o paralelismo, feito à data, entre modelos de gestão empresarial e de instituições de ensino superior. Não retoma a eleição do Reitor por uma Assembleia alargada, como a consagrada na Lei da Autonomia de 1988, ou por qualquer outro órgão, já existente ou a criar. Não remete para a participação de entidades ou personalidades externas neste processo, como uma representação de partes da sociedade interessadas na instituição. 
Em "prol da representatividade", propõe um modelo de plebiscito a efetuar no seio da respetiva comunidade. Comecemos então por aqui, pela comunidade, um conceito omisso do RJIES, na versão atual ou proposta, e que surge apenas inserido no processo de eleição do Reitor. Convenhamos que é escasso, para comunidade. Mas qual é, então, a sua composição? Docentes e investigadores, alunos, não docentes e não investigadores. Até aqui, tudo óbvio. Mas, acrescenta os antigos alunos. Desde logo a merecer reflexão e suscitar interrogações várias. Porquê? Representando o quê? Com que proximidade ou vivência da dita comunidade, com quem não interagem, certamente, da mesma forma?
Consultei vários estatutos de universidades e, também nestes, é omissa a definição de comunidade. Em todos os que vi, exceto num, o da Universidade de Aveiro, nos quais, por mérito de quem lhe deu forma e substancia jurídica, se dedica um artigo a este tema. E permite conceder aos antigos estudantes um estatuto similar ao de membro da comunidade "em vertentes específicas que o justifique". Similar porque não o detêm à partida, sendo, de facto, distintos dos membros da comunidade.
Mas voltemos à proposta: a participação dos antigos alunos na eleição do Reitor. De alguns antigos alunos, que não todos, como resulta do pormenor da proposta. Viajemos por mundos paralelos, para melhor ver o seu alcance. Imaginemos pois vários percursos.
Aluno de uma universidade durante quatro anos, mas que abandonou os estudantes e foi trabalhar. Não pode votar. O direito ao voto está condicionado ao sucesso académico, traduzido na conclusão de um grau! Mais valia a proposta referir-se a diplomados em vez de antigos alunos, mas talvez não fosse politicamente correto numa proposta política.
Aluno da mesma universidade mas apenas ao nível de mestrado, tendo obtido o diplomas nos dois anos de duração do curso, há uma década atrás. Pode votar.
Aluno em situação semelhante, mas tendo obtido o grau há quatro anos. Não pode votar! Confusos? Pois, a proposta prevê um período de nojo com a duração mágica de cinco anos, durante os quais, pelos vistos, não faz parte da comunidade. Desliguem-se primeiro, para depois votar!
Aluno com licenciatura por uma universidade, mestrado por outra e doutoramento por uma terceira. Conquanto os diplomas tenham sido obtidos há mais de cinco poderá contribuir para eleger três Reitores, um em cada instituição. Situação semelhante, imagino, para quem obtenha um diploma num grau conjunto concedido por várias instituições.
Aluno licenciado em 1987, sem qualquer ligação à Universidade desde então, hoje próximo da aposentação. Tem direito a votar! E a continuar a fazê-lo durante o resto da vida.
Antigo trabalhador numa instituição. Não tem direito ao voto. A não ser que também aí tenha sido aluno. Umas décadas de trabalho e conhecimento institucional e do ensino superior, não relevam. Uns poucos anos como aluno, algures no tempo, sim!
Escapa-me a racionalidade de tudo isto, que é, verdadeiramente, a questão de primeira ordem.
A um segundo nível há que mencionar, brevemente, os pesos de cada um dos corpos eleitorais. Brevemente porque é necessário evitar a armadilha de dar o figurino como aprovado, e dedicar o tempo aos ajustes das mangas e da bainha. Temos então um mínimo de 30% para os docentes e investigadores, de 25% para os estudantes, de 25% para os diplomados elegíveis, e de 10% para os não-não. Ficam assim 10% para cada instituição ajustar, num exercício de autonomia pouco alargada. Esta é matéria para regatear, fazer concessões, verdadeiras ou encenadas, trocar influências, medir o pulso aos movimentos e às associações de estudantes e de antigos alunos. Em público, na Assembleia da República, e em cada instituição se esta proposta adquirir estatuto legal.
E depois, há ainda um terceiro nível, o da organização de um processo eleitoral destes, desde a localização e recenseamento de todos os antigos estudantes vivos e a organização de um processo de votação nas quatro partes do mundo.
Duas notas finais.
Na proposta do Governo, a eleição tem os moldes acima descritos, mas a aprovação dos planos de médio prazo e de ação elaborados pelo Reitor compete ao Conselho Geral. É assim possível que o Reitor eleito veja os seus planos não serem aprovados.
Sobre o peso dos não-não, aos quais pertenço, não posso deixar de recordar um texto que li em tempos:
"Yet, ironically, many staff members are far more loyal to the university than students or faculty. In one sense this is because they are more permanent than students and faculty. Students are essentially tourists, spending only a few short years on the campus, and seeing relatively little of its myriad activities. Similarly, many faculty members view their appointments in the university as simply another step up the academic ladder. Their presence at and their loyalty to the institution is limited, usually outweighed by their loyalty to their disciplines and their careers. In contrast many staff members spend their entire career at the same university , although they may assume a variety of roles. As a result, they not only exhibit a greater institutional loyalty than faculty or students, but they also sustain the continuity, the corporate memory, and the momentum of the university. Ironically, they also sometimes develop a far broader view of the university, its array of activities, and even its history, than do the relative short-timers among the faculty and students." (J. Duderstadt, 2000, Presidente Emérito da Universidade do Michigan). 
Assim, não me parece que estas reflexões sejam apenas influências dos meus encontros recentes com Sir Humphrey Appleby, em forma de livro.

Nota: Este texto foi escrito antes de conhecer eventuais alterações à proposta do Governo, que terá hoje sido aprovada em Conselho de Ministros.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Quem escolhe o Reitor?


Nota prévia: sou um não-não (não docente e não investigador, na terminologia do RJIES) numa universidade, pelas minhas contas já lidei com oito mandatos reitorais, e acompanhei de perto a discussão, aprovação e implementação do atual Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES).
A pergunta do título tem, na realidade, duas respostas: a formal e a de facto.
Na forma, o Reitor é eleito por um Conselho Geral, um órgão com não mais de 35 membros, dos quais mais de metade dos são professores e investigadores eleitos, pelo menos 15% são estudantes eleitos e pelo menos 30% são personalidades externas cooptadas pelos eleitos.  Pode ainda incluir representantes eleitos pelos não-não, o que tendo em conta a dimensão e percentagens referidas, se traduz normalmente numa única pessoa.
No entanto, a resposta formal não traduz a realidade mais profunda, aquela que revela que o Reitor é eleito, em muitos casos, por si próprio! Sim, porque começa por ser candidato a candidato a Reitor. E é nesse período que promove a constituição de listas para o Conselho Geral e se aproxima dos estudantes ou dos seus representantes, com o intuito de garantir não só uma participação efetiva no processo de cooptação, como o objetivo final de assegurar a maioria dos votos de que necessitará.
A constituição do Conselho Geral assume, assim, um papel de primárias. E esta realidade ganha contornos mais nítidos, e agrestes, quando existe uma bipolarização, que pela sua natureza dispensa geometrias mais flexíveis e acentua uma lógica de “uns” e “outros”.
Não se trata de meras conjeturas de observador, mas antes processos assumidos por muitos dos intervenientes, desde os próprios candidatos a membros dos Conselhos Gerais e academias, e devidamente documentados. Veja-se o extrato de uma entrevista da então Reitora da Universidade de Évora, Ana Freitas (AF) ao Diário de Notícias (DN):
DN - O que é que mudou da primeira candidatura para a segunda. Aprendeu a fazer lóbi? 
AF - Não. Nós somos eleitos pelo Conselho Geral, que tem 25 pessoas. E fiz uma lista para o Conselho Geral, coisa que não tinha feito da primeira vez. Apresentei o programa, discuti-o e arranjei apoiantes, o que não tinha feito, achava conscientemente que bastava apresentar um programa e que as pessoas o iam ler, que votavam no que achavam melhor. 
DN - Tem de se mexer uns cordelinhos para garantir a votação. 
AF  - Sim. E duvido de que as pessoas, tanto a nível nacional como internacional, leiam os programas de governo e os programas dos partidos antes de votar. Na universidade é um bocado a mesma coisa.
Este é um dos extratos e reflexões que deram origem a um outro texto deste blog, em 2017, intitulado "O ovo, a galinha, a omelete e o empadão”. 
Este é um dos retratos possíveis de uma instrumentalização que enfraquece sobremaneira o Conselho Geral e a sua credibilidade, reduzindo-o a uma certa relevância formal e irrelevância institucional. Um aspeto tanto mais grave quanto uma das suas funções é, justamente, apreciar os atos do Reitor. 
O confinamento da eleição do Reitor a um grupo tão reduzido de pessoas, por oposição às anteriores Assembleias de composição muito alargada, suscitou, desde sempre, críticas de opacidade e de falta de democraticidade. Ora o RJIES está, finalmente, em processo de revisão, e uma das alterações propostas pelo Governo, como seria previsível, incide precisamente sobre o processo de eleição do Reitor.
Quem elegerá, então, o Reitor?
Uma pergunta que fica para o próximo texto.

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

No espaço público

The Age of Comics








25 anos de textos no espaço público. Ao sabor das leituras, da reflexão, da inspiração ... e das irritações. Ensino Superior e Ciência. Política e Serviços públicos. Serviço público. Pensamento que procura ser crítico. Tentando ir para além da superfície. Pensamento partilhado. Como contributo para o debate. Como contraponto. Pensamento exposto. Expondo-me. 
Antecedendo este blog e continuando para além dele. Como as cartas e artigos publicados em órgãos de comunicação social. Em suporte físico ou digital. Em forma de palavra escrita ou de palavra falada. Público. Expresso. Observador. Antena 1. Como os contributos submetidos no âmbito de consultas públicas, no portal do Governo, ou numa Universidade perto de si. 
Escrita Bonsai. Aparada em função do limite imposto, em número de palavras ou de caracteres, ou em tempo que se escoa em minutos, poucos. Escolhendo palavras, reduzindo frases, removendo pormenores. Revelando a essência. 
Eis os textos, para além do Blog.
No Semanário Expresso
13/09/2024 País bipolar
No Jornal Público
No Observador
Na Antena 1
As Notas Sobre o Ensino Superior fizeram parte, de 2012 a 2016, do Click, um programa da Universidade de Aveiro então emitido aos sábados no espaço "Os Dias do Futuro". Um desafio lançado pela Catarina Lázaro, combinando informação e opinião, para um público alargado, em não mais de dois minutos por episódio (tempo que acabou por ser, quase sempre, um pouco mais!). 

21/01/2012 Há Universidades a mais?
25/02/2012 Formação e emprego
31/03/2012 Financiamento do Ensino Superior
05/05/2012 Um trekking de alta montanha
09/06/2012 O que vemos ao olhar para um telemóvel?
28/07/2012 Mitos
26/10/2012 Rankings: Manusear com cuidado!
01/12/2012 A Rede
19/01/2013 Trabalhadores não-não
23/03/2013 Estudo e relatórios
08/06/2013 Da Autonomia
20/07/2013 Desemprego e vagas: ligações perigosas
28/09/2013 Colocar em perspetiva
16/11/2013 A reforma do ensino superior
28/12/2013 2014
08/02/2014 Eu patenteio, tu patenteias, ..., nós patenteamos (pouco), eles patenteiam (muito)
29/03/2014 A ponta da cauda
25/05/2014 Um novo modelo de financiamento?
27/09/2014 Mais superior
15/11/2014 Falando de propinas
27/12/2014 Internacionalizar
21/02/2015 O tempo dos consórcios
06/06/2015 Empregabilidade
03/10/2015 O mar que sobe
12/12/2015 Um fenómeno estranho!
30/01/2016 Revolução
26/03/2016 Autonomias
28/05/2016 Cabelos brancos
23/07/2016 Binário?

Em Consultas públicas
2018 Com as mão na massa - Proposta de alteração ao Regime Jurídico dos Graus e Diplomas do Ensino Superior
2024 Consulta pública, contributo público - Projeto de alteração dos estatutos da Universidade de Aveiro

País bipolar

Texto publicado no Expresso de 13 de setembro de 2024, sobre um tema que já tinha passado nas Notas em 2018, à data da proposta do governo.

Na última edição, a propósito da concentração de estudantes universitários em Lisboa e Porto, recordava-se a proposta do ministro Manuel Heitor (2018) de reduzir vagas nestas. Invocaram-se então os exemplos da Áustria, apontado como o segundo país com maior concentração de estudantes em duas cidades (Viena e Innsbruck), com 31%, e Espanha, com 27% em Madrid e Catalunha.

Faltou, no entanto, um olhar atento sobre o território. As províncias de Viena e Tirol (onde se situa Innsbruck), representavam à data 30% da população austríaca. Peso semelhante tinham as regiões de Madrid e Catalunha. Em Portugal, as Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto acolhiam 44% da população, a que se poderia juntar aqui, residentes em Leiria e Santarém, distritos sem universidades públicas.

Sim, deste ponto de vista Portugal será o mais bipolar, em sentido literal e até figurado. Mas nestes três casos a concentração de estudantes assemelhava-se à da população.