terça-feira, 29 de março de 2011

Notas passadas: O poder de decidir sobre quem vive e quem morre

Líbia, 2011: um ditador em queda; um país com petróleo; desertos; revoltas; intervenção de países europeus e dos EUA, a pretexto da defesa da população; o derrube de um regime como intenção não declarada.

Com as devidas diferenças lembrei-me de outra data.

Iraque, 2003; um ditador; um país com petróleo; desertos; a eventual existência de armas de destruição maciça; intervenção dos EUA e de países europeus com base na doutrina da guerra preventiva; o derrube de um regime em pano de fundo.

Eis um texto que, então, escrevi.

O poder de decidir sobre quem vive e quem morre

O desfecho previsível da invasão do Iraque está iminente: as forças militares americanas estão já em Bagdad e o fim do reinado e, talvez, do próprio ditador iraquiano estão próximos.

Para trás ficaram três semanas de guerra, dita de um novo formato. Foram muitas horas de imagens em directo, qual vídeo-guerra "soft", de jornalistas na linha da frente, de mensagens de propaganda, de infindáveis especulações nos estúdios de televisão, tentando adivinhar a hora seguinte do conflito. Tanta "informação" quase consegue fazer esquecer a crueza da guerra, ao mesmo tempo tão perto, mas tão invisível.

A realidade desta guerra, como de todas as outras, são as pessoas que sofrem, muitas das quais alheias ao conflito, sem partido tomado e com o desejo de viver em paz. Contar-se-ão certamente por milhares os mortos, os feridos, os que tudo perderam e cuja vida foi tragicamente alterada. Desta realidade, contudo, pouco sabemos.

Uma parte daqueles que iam ser "libertados" nunca verão o futuro. Mesmo destino tiveram alguns dos "libertadores". Por acidente, por erro, por medo, por raiva ... porque a guerra é assim.

Alguns dirão que é inevitável, que em todas as guerras há vítimas inocentes. E será verdade. Mas essa é também uma das razões pelas quais a guerra deve ser, de facto, o último recurso. Dirão, talvez, que é o preço a pagar. Mas será um preço demasiado elevado, imposto por países ditos civilizados a pessoas que tal não reclamaram.

Para evitar vítimas, hipotéticas, de um futuro mais ou menos distante, provocam-se vítimas bem reais no presente. Esta é a lógica da proclamada acção preventiva. Este é o fardo que recai sobre quem decidiu que já não existiam outras alternativas e, ao fazê-lo, tomou nas suas mãos o poder de decidir sobre a vida, o sofrimento e a morte de milhares de pessoas.

Publicado no Jornal Público, Cartas ao Director, em 09/04/2003.

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