O processo de fusão da Universidade de Lisboa e da Universidade Técnica de Lisboa é um caso singluar em Portugal. Alguns tentaram, apressadamente, vislumbrar aqui um modelo virtuoso para a racionalização da rede de ensino superior de que toda a gente fala, em abstrato, mas que ninguém ousa concretizar. Melhor uso de recursos, redução da despesa do Estado, reorganização da oferta formativa.
Em entrevista hoje publicada no Jornal Público, o Reitor da U. Lisboa, António Nóvoa (AN) terá desfeito as esperanças de alguns. E torna claro que ações e palavras vão, tantas vezes, demais, em sentidos diferentes.
Eis três extratos:
"O que vão fazer com esta oferta em duplicado ao nível da formação inicial ?"
[entre cursos da Faculdade de Ciências e do Instituto Superior Técnico]
AN: "Se há um curso com muita qualidade e com muitos estudantes em Ciências e outro idêntico no Técnico, não há problema algum que existam em duplicado. (...) O que conta não é tanto a questão da duplicação, mas sim a viabilidade e a qualidade intrínseca de qualquer uma das ofertas de formação."
Poderemos, portanto, ter dois cursos idênticos na mesma instituição pública, com, presume-se, dois corpos docentes distintos e instalações diferenciadas! Fiquei surpreendido com esta visão, pois admitia a fusão dos cursos, com um número de vagas adequado e o melhor do corpo docente disponível nas duas instituições de origem.
"O Governo tem apontado como objectivo da racionalização da rede do ensino superior a realização de poupança. É também um dos vossos objectivos?"
AN: "Não só essa não é a nossa pulsão, como não aceitaremos que desta fusão resulte uma qualquer redução de orçamento. (...) Temos o compromisso perante os portugueses de sermos capazes de fazer muito melhor com o mesmo nível de recursos que as duas universidades têm hoje, que é muito baixo do ponto de vista europeu."
Fazer mais e melhor com os mesmos recursos é uma via possível, criando mais valor para a mesma despesa, até porque o fazer mais com menos tem limitações reais óbvias.
"O ministro da Educação, Nuno Crato, indicou já por mais do que uma vez que o principal objectivo da revisão em curso do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior é precisamente o de providenciar uma autonomia reforçada a estas. Têm tido qualquer informação sobre o que isto significa e quando estará concluída a revisão?"
AN: "Zero! E temos algum receio. (...) Inicialmente propusemos que esta ficasse consignada logo no decreto-lei da fusão, mas o Governo entendeu que tal não era correcto porque esta é uma questão que diz respeito a todas as universidades. Aceitamos porque não queremos privilégios e somos contra aquela lógica terrível que se impôs, por exemplo, quando houve três universidades que passaram a fundações, tentando ganhar para si o que os outros não tinham. Não é essa a nossa matriz. O que queremos para nós queremos também para os outros."
Vamos ver se percebi. No caso fundacional foi publicada uma lei (RJIES) que consagrava essa possibilidade, competindo a cada instituição decidir iniciar um processo negocial com o Governo. Todas o poderiam ter feito; três fizeram-no. No caso da fusão, a UL e a UTL pretendem um regime de "autonomia reforçada" específica, por elas definida nos trabalhos preparatórios, e que seria concedida à nova Universidade, e só a ela, por Decreto-Lei (à margem do RJIES?). O Governo, neste caso bem, não acedeu, mas comprometeu-se, mal, desde logo a conceder um estatuto especial a esta nova instituição, estatuto que não é conhecido, não se sabe se será aplicável a todas as instituições, não foi discutido e não foi proposto à Assembleia da República.
Lógica terrível, sim, em que primeiro se criam compromissos com alguns, e depois se fazem as leis para os acomodar, partindo, claro, do princípio que a maioria parlamentar está lá para aprovar o que for combinado.
Nota: trabalho numa universidade com estatuto fundacional; considero que tal não afeta a presente análise, mas tal ficará ao critério de quem ler e quiser discutir o processo, as declarações e as interpretações.
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