domingo, 5 de fevereiro de 2017

Depois do fim

Depois do fim. Título de livro. Do livro de Paulo Moura. Escritor e Repórter. Sobre o nosso mundo. Ou sobre outros mundos, nem todos nossos, mas sempre de alguém. Daqueles que neles habitam. Dos que nos chegam num flash de notícias ou numa nota de rodapé, em breves segundos, para logo serem substituídos por outros. Daqueles que não vemos. Daqueles que nem sequer imaginamos. Daqueles que os testemunham. E que nos contam. E que nos mostram. E que nos fazem ver. E que nos fazem pensar. Para ler. Ainda a começar a ler. Cativado pela primeira página.

"Tenho um baú com todos os blocos de notas da minha vida de repórter ao serviço do Público. São centenas de cadernos de várias cores e tamanhos, alguns em formatos de livrinho, com capa de pele, outros com argolas, compridos, como os dos jornalistas americanos, ou largos, de folhas lisas para desenho. Muitos deles têm mais de 300 folhas, o máximo que consegui arranjar em cada momento, porque sabia que teria muito para escrever. E estão, de facto, rabiscados até à última página - por vezes, incluindo a capa - sempre sujos, deformados por andarem no bolso, mas raramente deteriorados ou rasgados por são quase sempre de boa qualidade. Comprei-os nos cantos mais remotos do mundo, mas com cuidado e critério. Não servia qualquer um. Lembro-me de passar horas à procura de uma papelaria ou alguma loja onde pudesse encontrar um caderno em que me agradasse o toque da capa, a densidade e o cheiro do papel. Nem sempre era fácil ou barato. Como se não pudesse entregar o que via, ouvia e sentia a um guarda que não fosse da minha inteira confiança. Tinham de ser cadernos valiosos, tal como cada um dos momentos que vivi em todos estes anos de viagens e reportagens. Sempre tive a noção de que aqueles momentos importavam. Eu quis que importassem.
Esqueço-me de muita coisa, mas tenho uma memória vivida de cada um destes cadernos. Pegar neles agora transporta-me para os lugares e alturas em que os usei. Lembro-me de os sentir na minha mão. Do sibilar da canetas nas páginas amareladas enquanto observava, investigava, recolhia depoimentos, no meio de gritos e correrias, tiroteios, manifestações, em cidades miseráveis, selvas e desertos."

in Paulo Moura (2016), Depois do fim - Crónica dos Primeiros 25 Anos da Guerra de Civilizações, Elsinore.

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