sexta-feira, 6 de março de 2020

Doze Anos, Doze Dias - 2011

Photo by Jason Blackeye on Unsplash











Dia 4.
Textos contra a corrente.
Escritas da margem, escritas à margem.
Afastado dos unanimismos instantâneos e de ocasião.
Não para apenas ser do contra, o que também podia acontecer!
Mas por querer procurar razões, lógica, coerências, substância, equilíbrio.


Descobri que não sou patriota!
1 de julho de 2011

Comecei a suspeitar que havia algo de errado quando deixei de acreditar que os feitos lusitanos de há 500 anos diziam muito sobre a capacidade do povo luso de hoje; dúvida que deve ser semelhante à que têm os gregos de agora quando evocam a sua antiga civilização. A sensação agravou-se quando não fui tomado de euforia no Euro 2004: não festejei a construção de estádios; não respondi ao apelo do mister Scolari; não trajei de verde e de vermelho; não andei de cachecol; não coloquei a bandeira na janela; não chorei na final quando perdemos com ... a Grécia. Mas a dura confirmação chegou esta semana, pela boca do próprio Presidente da República, quando disse que a opção por produtos portugueses e por passar férias em Portugal é, nada mais nada menos, que uma tarefa patriótica.

Consumir português, apenas porque o é, é bom para a economia? Devemos esquecer o preço, o poder de compra e a qualidade? Estimulará isto a nossa competitividade a médio prazo? Atrairá novos investidores estrangeiros? O discurso da abertura ao mundo parece ter desaparecido. Igual caminho para as virtudes do mercado e da concorrência, mesmo vindo de um Presidente-Economista. Mas se assim for reponham-se os mecanismos que nos ajudam a tornar tais atitudes mais racionais: introduzam-se barreiras e fronteiras, taxe-se o estrangeiro e subsidie-se o nacional. Boicotemos o que é espanhol, alemão, chinês ou brasileiro. Compremos alimentos nacionais, vestuário nacional, mobiliário nacional. Fiquemos pelos livros e pela música de autores portugueses, editados, produzidos e comercializados em Portugal. Deixemos de viajar e de contactar com outras culturas; deixemos a TAP para o transporte de estrangeiros ou para fazer de TGV entre Porto e Faro. Promovamos a saída dos McDonald, Zara, Lidl, CorteInglés e Auchan. Fechemo-nos, construamos muros nas nossas cabeças. Aproximemo-nos de uma Albânia que já existiu.

Mas uma nova dúvida assalta-me: o que é afinal um produto português? Um produto com código de barras 560? Será português o bacalhau que, podendo ser pescado por portugueses e em barcos portugueses, não vem das nossas costas? Será portuguesa a camisola feita numa fábrica do Vale do Ave, iluminada por lâmpadas holandesas graças à electricidade que vem de Espanha e de França, em que o gás natural usado nas caldeiras vem da Argélia e em que as máquinas são alemãs? Serão 100% made in Portugal as frutas que chegam aos nossos mercados em carros italianos, cujo gasóleo tem origem em petróleo da Nigéria e foi transportado até nós em barcos com bandeira do Panamá e com tripulação Filipina? Podemos dizer que são portugueses os produtos que circulam em estradas feitas por indivíduos de muitas nacionalidades e financiadas por contribuintes dos nossos parceiros europeus? Será, afinal, nacional o disco criado por artistas deste rectângulo, processado digitalmente num computador japonês e num estúdio adquirido através de crédito junto de um banco em que 30% do capital é detido por estrangeiros. E para tudo isto funcionar não nos esqueçamos ainda dos milhões de mensagem que circulam em telemóveis finlandeses, graças a satélites internacionais, e que utilizam na sua constituição terras raras da Mongólia. A nacionalidade de um produto não é mais do que uma convenção.

Noto que o Chefe de Estado não dirigiu um apelo particular às empresas, apenas reiterando o apelo ao consumo nacional. Ficamos sem saber o que pensa das empresas portuguesas que investem "lá fora", criando empregos para "os outros". Mas talvez as empresas não sejam afectadas pelo mesmo dever patriótico... Tal como o dinheiro, que não tem cor nem pátria. E que deve explicar porque também não se ouviu nenhuma sugestão aos investidores para confinarem as suas estratégias às empresas e à bolsa nacional. Ainda assim gostava que o Economista tivesse dito algo sobre a dimensão dos reais efeitos económicos que este "consome português" permitirá alcançar, a curto e a médio prazo.

Mas pode ser que eu esteja enganado. Nesse caso resta-me esperar que os outros povos sejam menos patriotas que os portugueses, que não se fechem, que continuem a comprar o que é português e a viajar até nós.

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