Declaração de interesses: faço parte do grupo de trabalhadores que ficarão sem dois meses de remuneração nos próximos anos.
Ouvi o Primeiro-Ministro justificar tal medida referindo que, segundo um estudo do Banco de Portugal, salários no setor público eram, em média, 10 a 15% superiores aos do setor privado.
Ouvi e fiquei surpreendido! Essa diferença, agora considerada injusta e a corrigir já em 2012, evidenciada num estudo de 2009, esteve ausente da campanha eleitoral, do programa de governo e de toda a discussão política, até ao derradeiro momento de apresentação da proposta de orçamento para 2012!
Ouvi e não percebi! Não percebi como é que existindo uma grande dispersão de salários, em ambos os setores, o critério a utilizar é o cariz público-privado, e não o valor salarial. Também não percebi como uma medida dita temporária pode corrigir qualquer disparidade salarial.
Ouvi e questionei! Qual a base do dito estudo? Uma comparação da média salarial de todos os trabalhadores? Compararia formações semelhantes? Atividades equivalentes? O mesmo nível de responsabilidade?
Entretanto, o número mágico - 10% - foi ecoando pela voz de deputados dos partidos do governo, políticos que sempre andam por aí, jornalistas e comentadores especializados em comentar comentários, a caminho de se transformar, por via da repetição, numa nova verdade.
Não vou aqui discutir se a medida é necessária, se é justa, ou quais as alternativas. Mas apenas se a justificação usada corresponde à verdade, tantas vezes apregoada.
Como cada vez gosto menos de comunicação em 2ª mão fui procurar o citado estudo. Em cinco minutos encontrei, na secção de trabalhos de investigação do sítio do Banco de Portugal, um documento de 2009 intitulado: "Salários e incentivos na administração pública em Portugal", da autoria de Maria Manuel Campos e de Manuel Coutinho Pereira, do Departamento de Estudos Económicos daquele banco. Pelo conteúdo concluo que este é "o" estudo.
Tendo lido as 23 páginas do documento (duvido que muitos dos opinadores o tenham feito) eis o que retiro e, em particular aquilo que, sendo importante, não nos foi dito:
1) Os dados de base referem-se aos anos de 1996, 1999 e 2005. Não incorporam, portanto, a evolução salarial dos últimos seis anos, período em que se desencadeou a crise internacional em que continuamos, nem as medidas em vigor em 2011,entre as quais o corte salarial no setor público.
2) O estudo parte de salários brutos, utilizando metodologias para descontar o efeito da maior experiência no setor público (em média + 2-3 anos) e o maior nível de escolaridade (enquanto 48% dos trabalhadores do público têm formação superior, a mesma percentagem no setor privado não concluiu o ensino básico).
3) Tendo em conta a correção para experiência/escolaridade os trabalhadores do setor público auferiam mais 10% do que os congéneres do privado (em 1996) e 15% (em 2005). Esta diferença é mais notória para os licenciados em início de carreira.
4) Experiência e escolaridade, só por si, não asseguram a comparabilidade das atividades desempenhadas, como os próprios autores reconhecem: "O nível de prémio está sujeito a variações consideráveis segundo as categorias profissionais."
5) Por esta razão o mesmo trabalho apresenta uma análise por categoria profissional, tendo constatado que "No caso das profissões nas quais ambos os setores são empregadores importantes verifica-se uma penalização [no setor público], a qual indicia pouca capacidade por parte da Administração Pública para atrair os trabalhadores que as desempenham. Pelo contrário, o prémio é particularmente alto em áreas como a saúde e a educação, nas quais o setor público é o principal empregador, o que em parte reflecte o forte poder negocial dos funcionários públicos nestas áreas."
5) E para terminar "Os funcionários públicos têm um ritmo de progressão na carreira mais lento do que os seus congéneres do sector privado.". A que acrescento ainda a possibilidade de, em alguns setores privados e em alguns períodos, os seus trabalhadores poderem beneficiar de prémios ou doutras componentes não incluídas no salário base.
A utilização de uma parcela de informação para extrapolar conclusões, e justificar medidas, é perfeitamente abusiva. Desconhecimento? Impreparação? Justificação de última hora? Falta de coragem para assumir a facilidade prática da medida? Pura manipulação para reduzir a contestação de trabalhadores públicos, para induzir uma fratura entre trabalhadores do público e do privado, ou para a breve trecho, alargar a medida aos privados? Qualquer destas razões é má e traz consigo a falta de confiança.
A verdade não se apregoa, pratica-se!
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