
Contributo submetido à Assembleia da República no âmbito da consulta pública da Proposta de Lei n.º 30/XVII/1.ª, apresentada pelo Governo, que altera, entre outros, o Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior.
Do sistema binário
10. A Proposta define, no n.º 2 do Artigo 2.º, a missão das instituições de ensino superior de forma unitária, sem introduzir qualquer diferença entre a missão das instituições do subsistema universitário e as do subsistema politécnico.
11. No Artigo 3.º, a Proposta estabelece o caráter binário do sistema de ensino superior, definido ao nível institucional: um sistema com dois tipos de instituições, umas de natureza universitária, outras de natureza politécnica.
12. Mantém-se assim a retórica em favor de um sistema dito binário, frequentemente alvo de elogio pela generalidade dos atores do sistema, embora se reclame, simultaneamente, o seu aprofundamento ou aperfeiçoamento, a diversificação das missões e a diferenciação institucional.
13. A verdade é que a evolução do sistema esbateu já, há muito, as diferenças próprias de um sistema que fosse, de facto, binário, retirando sentido a esta qualificação, num processo que se tem acentuado.
14. Observe-se o sistema de ensino superior público em Portugal.
15. Ao nível da formação de primeiro ciclo, há inúmeros programas de estudo com a mesma designação no ensino universitário e no ensino politécnico, nos mais variados domínios: Administração Pública, Agronomia, Animação Sociocultural, Artes Plásticas, Bioengenharia, Biotecnologia, Ciências e Tecnologias do Ambiente, Conservação e Restauro, Contabilidade, Design. E isto só até à letra D! Todo o contrário de uma verdadeira diferenciação e da correspondente legibilidade, para estudantes, empregadores e para a sociedade em geral, daquilo que se convencionou designar por ensino universitário e ensino politécnico.
16. A Lei 16/2003, de 10 de abril, estabeleceu a possibilidade de conferir o grau de doutor no ensino politécnico, em igualdade de condições com o ensino universitário, eliminando uma das marcas distintivas, até então, das instituições de natureza universitária.
17. A maior parte das universidades integra escolas de ensino politécnico e, consequentemente, este ensino é ministrado quer em instituições de natureza politécnica, quer em instituições de natureza universitária, ainda que em unidades orgânicas de ensino politécnico.
18. Muitas universidades são, de facto, instituições híbridas, ainda que com diferentes níveis de intensidade, como é demonstrado pelo facto de quase metade dos alunos da Universidade do Algarve estudarem em cursos de natureza politécnica (46%), ou quase um quarto nas Universidades de Aveiro e da Madeira (23%).
19. Estas aproximações, ao nível do ensino e da organização, não deixarão de ter repercussões também ao nível da carreira docente, sendo de esperar uma crescente convergência, senão mesmo fusão, entre as carreiras docentes do ensino universitário e politécnico, e entre carreiras docentes e de investigação.
20. A realidade do ensino superior não é binária, sendo a situação atual resultante de uma deriva politécnica das universidades e de uma deriva universitária dos politécnicos.
21. A própria Proposta encerra contradições a esse respeito, procurando, por um lado, reafirmar o quadro binário, enquanto, por outro, reconhece a existência de um contínuo de estados.
22. Assim, a Proposta introduz, no artigo 3.º, a noção de predominância de missão como fundamento para a distinção entre as instituições de natureza universitária e politécnica, numa aparente tentativa de sanar esta contradição conceptual.
23. Uma noção de predomínio associada a várias vertentes da missão, abrangendo o âmbito do ensino (estudos gerais vs. formação técnica avançada), a investigação (básica vs. aplicada) e a natureza dos ciclos de estudos (mestrado e doutoramento vs. ciclos curtos e licenciatura).
24. A operacionalização do conceito de predomínio, abrangendo várias vertentes, afigura-se potencialmente problemática, não se explicitando o quadro qualitativo ou quantitativo em que se baseará.
25. Adicionalmente, a própria terminologia empregada para a identificação da diferenciação institucional parece desfasada em relação à realidade, uma vez mais recorrendo a uma perspetiva binária, como nos casos do ensino ou da investigação acima referidos.
26. Estranha-se, ainda, que a menção ao desenvolvimento tecnológico, à inovação e à ligação ao tecido económico e social figure apenas na descrição das instituições de natureza politécnica, numa perspetiva muito distante do papel reclamado, desde há muito, pelas universidades, no que é normalmente designado pelo 3.º pilar da sua missão.
27. A aproximação das designações de ambas as instituições, consagrada no Artigo 5.º da Proposta, universidades e universidades politécnicas, é a contradição última da ficção binária, sendo que, de facto, todas estas instituições passarão a ser universidades, umas de nome próprio, outras com apelido.
28. Regista-se que, com a inclusão do Artigo 31.º-A, a Proposta parece conter, implicitamente, uma noção de hierarquia entre os dois tipos de instituições, considerando a possibilidade de conversão de universidades politécnicas em universidades, mas não o inverso.









